sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Uma noite de insônia

Fazem uns trinta anos...eu trabalhava numa pitoresca agência de propaganda, numa galeria da Brigadeiro. Era defronte ao hipermercado que ainda ali existe, quando se desce da Paulista.
Eram mesmo outros tempos. Podia-se alcançar o primeiro andar, onde trabalhávamos, por elevador ou uma escada em caracol, sem nenhuma fiscalização. Assim, eram freqüentes os roubos, e devia-se esconder ou levar consigo os objetos pessoais.

No térreo, várias lojas, ótica, papelaria, um restaurante japonês e o Zakuska, bar russo onde o pessoal da agência reunia-se religiosamente todas as noites. Às vezes, já às seis da tarde, podia-se encontrar ali um veterano contato, tomando seu primeiro aperitivo mesmo no balcão.

Serviam ali também refeições, e lembro-me da sopa borsch, de beterraba. Mas o forte mesmo era a bebida, vodka de preferência, numa garrafa com estactites de gêlo. De vez em quando eu comparecia.
O Russo e a Russa, simpático casal de velhinhos, eram os proprietários da casa. Quando não estavam servindo, sentavam-se quietinhos a um canto, e bebiam ainda mais que os fregueses.

Vivi muitas aventuras nesta agência, que tinha um clima familiar, pois o pessoal se manteve praticamente o mesmo, por muitos anos. Havia brigas, mas pode-se até dizer que eram fraternais, e tudo acabava em vodka.

Mas voltando às aventuras, uma delas se apresentou na pessoa de um diretor de arte português. Digamos que se chamasse Manoel.
Ele tinha um amigo, também lusitano, que fazia parte da diretoria de um grande banco. 
E propôs, a mim e meu redator, fazermos uma campanha para tal instituição. A conta era, e ainda é, muito grande, banqueiros ricos e tradicionais. O trabalho extra teria de ser sigiloso.

Fomos ao apartamento de Manoel, na Joaquim Eugênio de Lima. Logo de entrada, ele serviu-nos generosas doses de um saboroso e denso uísque. Uma estranha abertura para os trabalhos, mas pareceu cair bem: logo as idéias começavam a brotar, eu cada vez mais entusiasmado. Elétrico, só faltando subir na mesa, propus uma campanha do princípio ao fim, tema e visual.

O motivo central era o ouro, que tinha uma relação com o nome do banco. Ou, pelo menos, alguém havia me dito isto. Então, ilustrações com esculturas e objetos de ouro, contra um fundo negro. A campanha luzia, e eu também. Cheguei em casa lá pelas duas da manhã, e minha esposa estranhou tanto dinamismo:- ué, você tomou LSD?
Expliquei que a excitação era devida a um bom achado criativo. Mas, seria mesmo?

Não consegui pregar os olhos a noite toda, vendo a manhã aproximar-se. E com trabalhos para o dia seguinte! 
Quando este afinal chegou, contei a meu redator a insônia que me havia atacado, e ele disse que o mesmo lhe havia acontecido - nós fomos é drogados!

O bendito português, de “brincadeirinha”, havia colocado na bebida pó de Pau de Cabinda, casca de uma árvore africana. Trouxera isto de Angola, onde servira nas tropas coloniais. Uma pitada, e um pobre soldado marchava três dias sem parar. Demos-lhe uma bronca, mas o ambiente não dava mesmo para tomar muito a sério. Ainda ameacei-o: 
- vou contra-atacar com outra arma africana, de efeito oposto: você vai ser picado de tsé-tsé, a mosca da Doença do Sono! 

Fomos ao centro da cidade apresentar a campanha na sede do banco. Não foi aprovada.
Talvez o amigo de Manoel não tivesse afinal tanta influência na diretoria. Talvez o brilho do trabalho fosse mais o produto de uma noite de devaneios.
Mas se a campanha do ouro não brilhou tanto assim, nem este tilintou em nossos bolsos, pelo menos rendeu uns cobres, e deu para cobrir as perdas e danos.

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