sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Um cego de visão

Quando trabalhei no Martinelli, por volta de 1960, tinha um vizinho muito curioso. Isto não seria novidade, o prédio todo era uma galeria de tipos excêntricos.
Seu problema era ser cego. O nome, Shoji Ito, mais conhecido por "Seu Jorge" pelos freqüentadores do prédio.

Mesmo cego, agia com desenvoltura, nas profundezas de seu labirinto de escuridão.
Sondando o caminho com sua bengala branca, como o sonar de um morcego, nunca se perdia, com seus sentidos restantes aguçadíssimos. Inclusive para a percepção da personalidade dos outros. Ninguém o enganava.

Meus amigos e eu ficávamos boquiabertos ao vê-lo tirar o dinheiro, sempre exato, da carteira.
- Ô, Ito, você não é cego coisa nenhuma, disse-lhe uma vez. Ele se limitava a rir, parecia sempre de bom humor. Mas tinha seus momentos de revolta, contra a injustiça que a vida lhe infligira.
Não nascera assim, a cegueira iniciara-se lá por volta dos oito anos.
Então sabia o que estava perdendo, um mundo rico e colorido. Procurara consolo, inutilmente, em várias religiões.

De sua mesa, comandava um pelotão de agregados, que vendiam seus produtos de limpeza e vinham prestar-lhe contas. Ele começara nas ruas, vendendo vassouras e produtos, amparado por um ajudante. Ainda hoje existem cegos que trabalham assim.

Entre sua equipe haviam dois irmãos encanadores, Antenor e Dagmar. Baixinhos, mas com bíceps de Mike Tyson, eram também muito diferentes. Antenor era trabalhador e correto, e Dagmar um malandrão, que cafetinava sua mulher, segundo ele meretriz de muita beleza e competência.
Coisas do Velho Martinelli!

Ito conhecia todo mundo, inclusive e intimamente, todas as mulheres do pedaço.
Dava conselhos a mim e Shimamoto, colega de estúdio, ambos muito jovens e inexperientes:
- Com aquela ali, não! Aquilo não vale nada!

Às vezes, o acompanhávamos até seu ponto de ônibus, na Casper Libero, defronte à Gazeta.
Ali, no Bar e Lanches Conceição, muitas vezes ele comia e tomava suas cervejinhas.
Às vezes, passava da conta, e os donos, simpáticos portugueses, colocavam-no no ônibus, onde o motorista, também seu conhecido, o deixava bem em casa, na Zona Norte.
Passei hoje por ali, vindo da Pinacoteca, e o "Conceição" continua, como há quarenta e tantos anos atrás!

Quando a cizânia instalou-se em nosso estúdio, e Shimamoto e eu fomos expulsos, o bom Ito nos acolheu, com pranchetas e armários. Logo a seguir, ousadamente, candidatou-se a deputado!
Isto ocorreu em 62, enquanto eu estava em Porto Alegre.
Não foi eleito, e isto deve ter sido um grande baque. Enquanto tomávamos outros rumos, Ito desapareceu. Não ouvi falar mais dele, até dois anos atrás.

Então, eis que ele me telefona! Pelo expediente duma revista tinha descoberto o Shimamoto, que lhe deu meu número. Casado e tranqüilo, vive num condomínio em Cotia, aplicando acupuntura e a massagem "Ama", tradicionalmente executada por cegos no Japão, onde fora fazer o curso.

Dizem que o pior cego é o que não quer ver. Tanta gente, com boa visão e enxerga como uma toupeira, diante do fabuloso Ito.

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