sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Fim de favela

No Carnaval, me lembro tanto da favela, onde ela, oi, morava... Tudo que eu tinha era uma esteira e uma panela, mas ela, oi, gostava...

E hoje eu ando pelas ruas da cidade, vendo que a felicidade foi a vida que passou...

E que a favela, que era minha e que era dela, só deixou muita saudade, pois o resto ela levou...

Bons tempos aqueles em que as favelas davam samba, e belos sambas. Atualmente, nem mais podem ser chamadas de favela. Está se usando, mais politicamente correto, o termo "comunidade carente".

Mas, aí é que não dá samba, mesmo...

Há mais de vinte anos, quando viemos morar no Brooklin, a favela das Águas Espraiadas cortava, como uma cicatriz aberta, toda região. Do Rio Pinheiros ia ao Aeroporto, e daí prosseguia.

Havia poucas passagens para atravessá-la.

Uma destas era a Avenida Portugal, ainda com duas mãos. Lembro-me que ela se estreitava, passava-se (de carro) sobre a ponte, subindo para o Jardim Cordeiro. 

Apesar de não ser uma visão agradável, jamais fomos incomodados pelos favelados. De vez em quando alguém tocava a campainha, pedindo algo, e tudo bem.

Mas a região da Berrini progredia, rapidamente. Os terrenos se valorizaram, não havia mais espaço para barracos, cada vez mais empurrados para fora pelos novos edifícios.

Aí veio a Avenida Roberto Marinho, e o que era um rio de tetos de zinco virou um leito de asfalto, singrado por cardumes de carros e caminhões. 

Não havia volta, para a favela.

Uns poucos remanescentes ficaram enrustidos, à sua margem. Mais para as bandas do aeroporto, longe do burburinho da Berrini.

Mas, como a aldeia de Asterix na Gália, cercada pelos romanos, um pequeno núcleo de resistência persistiu. E por bom tempo.

O "Jardim" Edith...

Resumida no final a um pequeno morro - artificial, a favela viu-se cercada pelos imensos edifícios pós-modernos de Bratke e Collet.

O centro da cidade deslocava-se para ali. E a favela resistiu...

Veio a imperatriz de nossas emissoras de tv. E um enorme heliporto.

E a favela resistiu.

Grandes shoppings, cadeias de luxuosos hotéis internacionais... e o Jardim Edith, do alto de seu morrinho, olhava desafiante tudo isso com indiferença, na sua precária e petulante feiúra.

Davi de papelão, lata e compensado encarando os Golias de concreto. Paradoxal e heróica, uma excrescência dissonante na região.

Mas, para tudo há limite. Veio então a Ponte Estaiada, convertida imediatamente em cartão postal da cidade, contrastando violentamente com a favelinha ao fundo. Não era mais possível.

E aí, a resistência acabou.

Os entendimentos devem ter sido demorados, com os moradores. Mas o final foi rápido; inda pouco lá estava, e quando passei no outro fim de semana, pouco tinha sobrado.

O morro enegrecido, como se uma bomba de napalm ali tivesse caído; umas poucas ruínas restantes, como esqueletos carbonizados.

De noite, uma solitária luz lá dentro. Talvez um único e teimoso morador, disposto a resistir até à morte, ou, mais provável, um vigia do que sobrou.

Logo nada mais do estranho morrinho restará; ponto de ouro, cobiçado pelas construtoras, logo será palco de novo e grandioso lançamento, anunciado em todas as esquinas do Brooklin.

E da favela, que era minha e que era dela, só restou muita saudade, pois o resto ela levou...

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