sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Retorno à sala 1922 do Martinelli

Em 1960, montamos um estúdio de desenho no Prédio Martinelli. Já escrevi algumas vezes sobre o tema, mas, como tudo na vida, ele é infindável. Dissecamos as moléculas e encontramos o átomo. Depois, as partículas sub-atômicas, e por aí vai. Nada, na natureza tem fim. E nem começo.

É tudo assim. Então, num dia nostálgico e cinza como hoje, retornemos a 1960.

Quatro amigos, nos havíamos conhecido na Editora Outubro, na R.da Mooca. No início, não era ainda amizade, mas simpatia, ou afinidade de interesses e aspirações artísticas. Estivemos no Martinelli por dois pitorescos anos, convivendo com a exótica fauna que o freqüentava.

Era uma coexistência pacífica, na qual formávamos um grupo estranho, e que talvez por isso, destoasse e chamasse a atenção dos decadentes e fadados à extinção habitantes do prédio e sua vasta população flutuante. Que incluía malandros, prostitutas, jogadores, gigolôs, alfaiates, dentistas, bancários e outros representantes de classe, lutadores de judô da Academia Ono... enfim, quase tudo que se possa imaginar. Assim, sentíamos-nos um pouco boêmios, também, participando deste bas fond.

Todos os quatro brilhantes desenhistas, éramos personalidades bem diversas. Dois deles eram investigadores de polícia bissextos que davam, algumas vezes, plantões no DEIC, mas tinham bastante folga para dedicar-se ao que realmente gostavam, o desenho. Um deles, pouco freqüentador do estúdio, tornou-se mais tarde diretor de um importante departamento da Editora Abril.

O outro, bem mais incomum, era um temperamental. De sangue espanhol, às vezes interrompia o trabalho para sapatear um passo doble, exclamando: 

- yo soy gitano! Olé!

Ou invadia a sala e disparava, inesperadamente, seu 38 contra o céu do Anhangabaú! Era muito divertido e grande contador de piadas, embora mergulhasse, às vezes, em profunda melancolia.

Restávamos eu e o Julio, talentoso nissei que era o xodó da Editora, pelo esmero com que realizava um pequeno número de páginas, embora isto lhe rendesse ainda menos dinheiro do que o pouco que era habitualmente pago. Éramos os mais jovens e inexperientes, e contemplávamos com espanto aquele admirável mundo novo que tínhamos, diariamente, pela frente.

Chamemos nosso amigo andaluz de Arellano, pseudônimo que usava às vezes em suas histórias.

Embora fosse casado e pai de três filhos pequenos, era um boêmio nato, sendo assim nosso guia e mestre pelas ruas tortuosas do velho Centro. Graças a ele conhecemos recantos da São Paulo dos anos 60, que já não mais existem. 

A Caverna Santo Antonio, o Franciscano, a Adega Lisboa Antiga, onde confessou, depois de umas que outras, que seu pai, velho anarquista, havia se enforcado em sua aldeia natal. 
E a ele coubera retirá-lo da forca e dar-lhe sepultura. 
Talvez fosse esta a maior razão de sua ocasional depressão.

Estivemos umas vezes num bar, no Lgo. São Francisco, que só servia sardinhas na brasa, acompanhadas de cerveja. E num bilhar da Pça. da Sé, onde o chopp corria solto. Ele tudo sabia e tudo provara, ali no Centro.

Ou caminhávamos, sem nenhum medo, pelas vielas e botecos da Boca do Lixo, encontrando, às vezes, algum habitante do Martinelli, como o alfaiate João Dias, jogando bilhar.

Mais tarde, os caminhos dos quatro divergiram e nossa sala, a 1922, esquina da S.João com Libero Badaró, foi fechada.

Julio e eu fomos para uma cooperativa de Porto Alegre, fundada pelo governo Brizola, que parecia a salvação da lavoura para o desenhista nacional. Mas, rapidamente, revelou-se só demagogia e corrupção. 

Fiquei um ano por lá, e quando as coisas já estavam ficando desesperadoras, surgiu-me a oferta de um bom emprego numa multinacional, uma grande agência de propaganda paulista. Lá estava trabalhando o bom Arellano, que foi quem me recomendara.

Fiquei ali quatro anos, depois surgiram propostas melhores, e em outro emprego, tive a alegria de retribuir o favor a Arellano, levando-o para trabalhar no meu setor. Mas notei que ele já não tinha mais o brilho e a irreverência de outros tempos, era mais calado e submisso. Fora-se a verve e o fogo dos olhos.

Mudei novamente de firma, e ele continuou por lá e não mais nos vimos, embora ainda desse seus plantões no DEIC, pegado a minha nova agência.

Numa tarde, era véspera de Ano Novo, eu estava só em minha sala. Quase todo pessoal já saíra para festejar, e eis que toca o telefone.

Era Arellano, para desejar um Feliz Ano. Fiquei comovido, mas achei estranho, pois há muito não nos falávamos. Batemos um bom papo, e como o ano que se iniciava era 69, ele ainda foi irônico, na despedida. Como nos bons tempos. 

Fui para casa e a sensação de estranheza me acompanhava. Passou o feriado. Estou novamente só em minha sala, e o telefone soa. Era sua esposa, convidando-me para a Missa de Sétimo Dia.

Meu amigo não conseguira encarar o ano que se avizinhava, e suicidara- se, naquela mesma tarde de nossa conversa. Tinha 35 anos, e uma vida de promessas pela frente. Senti-me, novamente, como nos tempos do Martinelli, adolescente e perplexo ante nosso absurdo mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário