O Martinelli, em 1960, era um burburinho, um entra-e-sai de pessoas, sem o menor controle. Podia-se entrar pela São Bento, pela Líbero Badaró ou São João, pela porta giratória do Hotel São Bento. Numa das vezes que entrei pela R.São Bento, o ascensorista, desconhecido e sem uniforme (poderia ser um dos inquilinos), cantava a plenos pulmões "Rosa", de Pixinguinha. E como cantava, lembrando Orlando Silva!
Nossa sala, a 1922, ficava num canto do 19º andar, na face que dava para o Anhangabaú. Saindo do elevador e dobrando à direita, cruzava-se um portal escuro, e ali ficava um conjunto de salas, servidas por um banheiro em comum. Éramos quatro desenhistas, e nosso trabalho principal eram histórias em quadrinhos de terror para a editora Outubro. Nada mais apropriado então que aquele soturno ambiente.
Fizemos amizade com alguns dos vizinhos. O Dr.Moura, veterano dentista, ótima pessoa, mas com a visão de uma toupeira. Olhava uma boca toda cariada e achava perfeita. O alfaiate João Dias e o cego, mas espertíssimo Ito, comerciante de materiais de limpeza.
Ito tinha sob sua custódia trabalhos paralelos, agregados que distribuíam seus produtos, e dois irmãos encanadores, que não sei porque se relatavam a ele. Eram baixinhos, mas de braços colossais, moradores de Ferraz de Vasconcelos. Um deles agenciava sua própria mulher, que era prostituta. Não a conheci, mas ele orgulhava-se da beleza e competência da "patroa", na mais velha das profissões!
Eu era muito jovem e inexperiente e o Martinelli parecia-me a Babilônia. Gays engravatados batiam à porta e tínhamos de ter muito tato para dispensá-los numa boa. Vendedoras de cafezinho vinham oferecer seu produto, e também serviços extra, também quentes.
Romances baratos inevitavelmente surgiam, pois éramos jovens e talentosos, e algumas garotas posavam como modelos para nossos desenhos. Apesar do clima de bas-fond, nunca tive medo dali. Algumas vezes trabalhava até altas horas. Ia pegar uma condução para a Barra Funda, onde morava, sem nenhuma preocupação. Ao sair pela Líbero Badaró, sempre me deparava com o luminoso em neon da "Salsicharia Especial", onde dois porquinhos disputavam, para sempre, uma fileira de salsichas.
Ganhava-se pouco, mas era muito pitoresco e divertido. Um de meus colegas, investigador bissexto da polícia, às vezes sacava seu 38 e disparava para o espaço, através das largas janelas. Outro deles, que morava na periferia de Santo André, sem dinheiro porque a editora atrasava o pagamento, dormiu ali algumas frias noites. Dobrava as roupas, para não se amassarem, embrulhava-se em jornais e recolhia-se embaixo da prancheta, tentando evitar o vento gelado que subia pela São João. Prenunciava assim os sem-teto que viriam, nas décadas seguintes. Felizmente seu trabalho e esforço tiveram sucesso, mais tarde.
Embora muitas vezes almoçássemos fora, como no Restaurante Dom, bom e barato, na R.Aurora, atrás da Pça. da República, podia-se comer no Prédio mesmo. Haviam bares e lanchonetes, e não me lembro de ter passado mal com a comida.
Com tanta gente de dentro e de fora, ainda assim sentia-se no prédio um clima de comunidade. Parecia haver uma estranha ligação entre pessoas tão diversas, um ar de compreensão e tolerância. O denominador comum era o Martinelli, naquele tempo ainda imponente e venerável. Sua presença majestosa e severa era o que dava a todos, abrigados à sua sombra, esse sentido de identidade.
Há 8 anos
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