sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Mais amici miei

Entrei na publicidade como ilustrador. Aos poucos, foram notando que além do desenho, eu tinha facilidade para criar anúncios e filmes. Numa convenção latino-americana da minha agência internacional, os chefões foram para as solenidades e festas, deixando o trabalho de criar as campanhas para a convenção nas mãos de nós, o povo.

Quando retornaram para fazer os serviços, nada mais lhes restava: eu e um redator havíamos feito tudo, e apesar de tentarem, não conseguiram fazer melhor. Nosso trabalho foi apresentado, com muito sucesso.

Assim passei a ser um criador de meio período, pois a agência, antes pequena, agora expandia-se e precisava novos valores. Mas ainda havia o que ilustrar, então eu ficava no fio da navalha.

Sem saber que fazer comigo, colocaram-me como parte de um trio de criação. Os outros dois, famosos e consagrados no meio, não poderiam ser mais díspares. Joca, o redator, era bem mais velho que eu, gordo, baixinho, careca e dotado de um amplo nariz. Sempre brincando e contando piadas. A diretora de arte, uma alemã, alta, cabelos loiros lisos como uma taboa. Era tão refinada quanto prepotente, taciturna e posuda.

Faziam dupla há um bom tempo, tendo passado juntos por várias agências. Era a dupla Mutt e Jeffa, em alusão a dois antigos personagens de quadrinhos, um alto e magrelo e o outro baixote.

Trabalhavam juntos há tantos anos, que haviam alusões a um romance entre eles. Mais tarde, Joca me confessou que detestava a alemã, e duplava com ela mais por medo que por amizade:

- Aquela nazista! - disse uma vez.

Pois bem, cá vim eu cair nessa estranha dupla, e dava-me bem com os dois.

Certo dia, ela recebe uma bela proposta e pede demissão. Sem que o tivesse pedido, eis-me, principiante e inexperiente, fazendo dupla com o famoso Joca! Apesar de gozador nato, ele foi paciente e solidário comigo. Quando o maquiavélico diretor de criação quis trocar-me de dupla, para colocar uma estrela em meu cobiçado lugar, Joca opôs-se:

- Pra quê? Nós estamos nos dando bem!

Isto não impedia suas brincadeiras, que eram a face defensiva que apresentava para o mundo. Quando, ao fim do expediente, caminhávamos pela Casper Libero, rumo à Garagem São Paulo, onde deixávamos os carros, Joca simulava um acidente, como se alguém o houvesse pisado, e fazia o maior escândalo, em altos brados.

- Meu pé! Senhor, o meu pé! - Isto chamava a atenção da rua inteira, e eu, que ainda era muito tímido, não sabia onde enfiar a cara.

D’outra feita, fomos fazer uma campanha em seu apartamento na Av. Paulista, e ele e a esposa, também madurona, brincando, rolavam pelo chão, como duas crianças em luta.

Joca era um perdulário. Recebendo há muito, altos salários, desperdiçava-os em bobagens. Se fosse nos dias de hoje, seria a festa dos camelôs da Vinte Cinco de Março. Não podia ver uma banca, e lá vinha ele com óculos, radinho, reloginho de Mickey, enfim, era o rei do gadget, da bugiganga.

Confidenciou-me que o dinheiro lhe queimava as mãos. Seu pai fora artista de circo, trabalhara no rádio e no cinema e nunca juntara um centavo. Assim, ele sentia-se culpado, pelo dinheiro que lhe afluía, sem grandes dificuldades. Era inimigo das convenções. Á vezes, no meio dum bate papo com outros colegas na sala, deixava as calças caírem, expondo os generosos glúteos.

Depois nos separamos, seguindo os caminhos de outras agências. Uma história dele, que não testemunhei, virou lenda urbana. De acordo com o narrador, variava o local, ou as pessoas, mas basicamente, era assim: O dono de uma agência estava-a mostrando a um cliente, na hora do almoço. No segundo andar havia uma série de janelas próximas, dando uma para cada sala. Entram na primeira, e lá está, sozinho, o Joca. Saem pelo corredor, e quando entram na segunda, lá está o Joca também! Havia entrado pela janela, caminhando pela balustrada. Repetiu o truque várias vezes, para vexame do dono e diversão do visitante, que elogiou a "unidade da equipe".

Voltamos a trabalhar juntos em 85, quinze anos depois da minha estréia na Criação. Ele continuava o mesmo, brincando com tudo, atrapalhado e sem dinheiro. Tínhamos então uma casa no Litoral Norte, e ele pediu certa vez que lhe déssemos uma carona na rodoviária do Guarujá, onde tinha apartamento.

Como esperado, chegou ao encontro atrasadíssimo. Na volta, rolava no chão do carro, brincando com meu filho de sete anos. Ele e esposa adoravam crianças, e adotaram dois bebês, apesar de ambos cinquentões e com problemas cardíacos.

Novamente nos separamos e ele foi trabalhar em Belo Horizonte. A idade já lhe pesava, e os empregos decentes escasseavam por aqui. Ainda o vi uma vez, na grande agência em que trabalhei, na R. Gomes de Carvalho. Tinha vindo a São Paulo tentar um retorno, mas nada conseguiu. As coisas estavam, mesmo, difíceis.

Numa das feijoadas amigas que eram realizadas ás quarta feiras, um dia, veio a notícia: O bom Joca havia falecido, lá nas Gerais. Deixaram-no uma manhã lendo o jornal na sala, e o encontraram do mesmo modo, como se tivesse adormecido. Era o fim de uma lenda da propaganda, já legendário também na nova terra onde se havia estabelecido. Morrera como um anjo, da mesma forma que levara a vida.

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