sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O que fazer quando se foge da escola de datilografia?

Estive lendo no site o dedicado trabalho do uma pessoa, na formação de seus alunos de datilografia.
E pensei, com certa tristeza, que jamais seria um de seus formandos.
Simplesmente, eu não levava jeito com o teclado. E precisava decidir-me por uma profissão, pois o dinheiro que meu pai deixara ao falecer não era muito e estava sendo consumido rapidamente

E sem datilografia, nada feito! Onde iria trabalhar? Alguém equiparou o problema ao da computação, hoje em dia. Disse um parente - pára, rapaz, com essa história de desenho, isto não dá nada, o negócio mesmo é o comércio!

Rendi-me às circunstâncias, e eis-me na Escola Underwood, dedilhando aquelas pesadas máquinas enferrujadas, bem ao sopé da colina encimada pela Igreja de S.Geraldo, no Lgo.Padre Péricles, Perdizes. Mas preferiria estar no Cine Sta.Cecília, ali perto.

Bem que eu tentei. Não era só minha canhestrice ao teclado; outras forças se rebelavam, queriam um trabalho mais livre e individual, bem fora do horizonte exíguo de uma repartição.
A S D F G H J K L Ç...as letras ainda continuam as mesmas, porquê eu me rebelava contra as duras teclas? Fiquei ali uma semana, então saí para não mais voltar.

A primeira indicação de trabalho em publicidade partiu de um tio, que conhecia alguém no depto. comercial da Três Leões. Cruzei a Pça .Julio de Mesquita, aboletei-me numa cadeira...e eis listas e listas de peças para datilografar! Não era bem aquilo que esperava como publicidade. Então agradeci a boa vontade do chefe e saí, jurando nunca mais trabalhar, se possível, nesse tipo de ofício, enquanto cruzava as figueiras e chichás do Lgo. do Arouche.

Minha teimosia renderia frutos, como quando comecei minha Via Crucis numa agência de verdade. Relatei isto em "Emprêgo Al Primo Canto", neste site. Não foi fácil, mas aos poucos as coisas foram se encaixando, e ao contrário do que diziam os sábios tios, arte podia render dinheiro, e ainda abrir novas portas.

Comecei com desenho, parti para a ilustração, e enfim para a direção de arte, em criação de propaganda. Tive vários trabalhos premiados, em vários setores. Passados tantos anos, eis que vejo-me finalmente encarando as temidas teclas, embora mais suaves, de um computador.
Não sou bom ainda. Escrevo catando milho; a fuga da Escola Underwood deixou seqüelas, até hoje. Mas gosto de escrever, então isso facilita o trabalho.

Mas ainda gosto, muito mais, de um bom desenho ou pintura, e afinal não fiz muitas na vida, sempre sobrecarregada com prazos a cumprir e responsabilidades para com os patrões.
Mas, quem sabe, ainda dá tempo!Mãos à obra!

Mais amici miei

Entrei na publicidade como ilustrador. Aos poucos, foram notando que além do desenho, eu tinha facilidade para criar anúncios e filmes. Numa convenção latino-americana da minha agência internacional, os chefões foram para as solenidades e festas, deixando o trabalho de criar as campanhas para a convenção nas mãos de nós, o povo.

Quando retornaram para fazer os serviços, nada mais lhes restava: eu e um redator havíamos feito tudo, e apesar de tentarem, não conseguiram fazer melhor. Nosso trabalho foi apresentado, com muito sucesso.

Assim passei a ser um criador de meio período, pois a agência, antes pequena, agora expandia-se e precisava novos valores. Mas ainda havia o que ilustrar, então eu ficava no fio da navalha.

Sem saber que fazer comigo, colocaram-me como parte de um trio de criação. Os outros dois, famosos e consagrados no meio, não poderiam ser mais díspares. Joca, o redator, era bem mais velho que eu, gordo, baixinho, careca e dotado de um amplo nariz. Sempre brincando e contando piadas. A diretora de arte, uma alemã, alta, cabelos loiros lisos como uma taboa. Era tão refinada quanto prepotente, taciturna e posuda.

Faziam dupla há um bom tempo, tendo passado juntos por várias agências. Era a dupla Mutt e Jeffa, em alusão a dois antigos personagens de quadrinhos, um alto e magrelo e o outro baixote.

Trabalhavam juntos há tantos anos, que haviam alusões a um romance entre eles. Mais tarde, Joca me confessou que detestava a alemã, e duplava com ela mais por medo que por amizade:

- Aquela nazista! - disse uma vez.

Pois bem, cá vim eu cair nessa estranha dupla, e dava-me bem com os dois.

Certo dia, ela recebe uma bela proposta e pede demissão. Sem que o tivesse pedido, eis-me, principiante e inexperiente, fazendo dupla com o famoso Joca! Apesar de gozador nato, ele foi paciente e solidário comigo. Quando o maquiavélico diretor de criação quis trocar-me de dupla, para colocar uma estrela em meu cobiçado lugar, Joca opôs-se:

- Pra quê? Nós estamos nos dando bem!

Isto não impedia suas brincadeiras, que eram a face defensiva que apresentava para o mundo. Quando, ao fim do expediente, caminhávamos pela Casper Libero, rumo à Garagem São Paulo, onde deixávamos os carros, Joca simulava um acidente, como se alguém o houvesse pisado, e fazia o maior escândalo, em altos brados.

- Meu pé! Senhor, o meu pé! - Isto chamava a atenção da rua inteira, e eu, que ainda era muito tímido, não sabia onde enfiar a cara.

D’outra feita, fomos fazer uma campanha em seu apartamento na Av. Paulista, e ele e a esposa, também madurona, brincando, rolavam pelo chão, como duas crianças em luta.

Joca era um perdulário. Recebendo há muito, altos salários, desperdiçava-os em bobagens. Se fosse nos dias de hoje, seria a festa dos camelôs da Vinte Cinco de Março. Não podia ver uma banca, e lá vinha ele com óculos, radinho, reloginho de Mickey, enfim, era o rei do gadget, da bugiganga.

Confidenciou-me que o dinheiro lhe queimava as mãos. Seu pai fora artista de circo, trabalhara no rádio e no cinema e nunca juntara um centavo. Assim, ele sentia-se culpado, pelo dinheiro que lhe afluía, sem grandes dificuldades. Era inimigo das convenções. Á vezes, no meio dum bate papo com outros colegas na sala, deixava as calças caírem, expondo os generosos glúteos.

Depois nos separamos, seguindo os caminhos de outras agências. Uma história dele, que não testemunhei, virou lenda urbana. De acordo com o narrador, variava o local, ou as pessoas, mas basicamente, era assim: O dono de uma agência estava-a mostrando a um cliente, na hora do almoço. No segundo andar havia uma série de janelas próximas, dando uma para cada sala. Entram na primeira, e lá está, sozinho, o Joca. Saem pelo corredor, e quando entram na segunda, lá está o Joca também! Havia entrado pela janela, caminhando pela balustrada. Repetiu o truque várias vezes, para vexame do dono e diversão do visitante, que elogiou a "unidade da equipe".

Voltamos a trabalhar juntos em 85, quinze anos depois da minha estréia na Criação. Ele continuava o mesmo, brincando com tudo, atrapalhado e sem dinheiro. Tínhamos então uma casa no Litoral Norte, e ele pediu certa vez que lhe déssemos uma carona na rodoviária do Guarujá, onde tinha apartamento.

Como esperado, chegou ao encontro atrasadíssimo. Na volta, rolava no chão do carro, brincando com meu filho de sete anos. Ele e esposa adoravam crianças, e adotaram dois bebês, apesar de ambos cinquentões e com problemas cardíacos.

Novamente nos separamos e ele foi trabalhar em Belo Horizonte. A idade já lhe pesava, e os empregos decentes escasseavam por aqui. Ainda o vi uma vez, na grande agência em que trabalhei, na R. Gomes de Carvalho. Tinha vindo a São Paulo tentar um retorno, mas nada conseguiu. As coisas estavam, mesmo, difíceis.

Numa das feijoadas amigas que eram realizadas ás quarta feiras, um dia, veio a notícia: O bom Joca havia falecido, lá nas Gerais. Deixaram-no uma manhã lendo o jornal na sala, e o encontraram do mesmo modo, como se tivesse adormecido. Era o fim de uma lenda da propaganda, já legendário também na nova terra onde se havia estabelecido. Morrera como um anjo, da mesma forma que levara a vida.

Retorno à sala 1922 do Martinelli

Em 1960, montamos um estúdio de desenho no Prédio Martinelli. Já escrevi algumas vezes sobre o tema, mas, como tudo na vida, ele é infindável. Dissecamos as moléculas e encontramos o átomo. Depois, as partículas sub-atômicas, e por aí vai. Nada, na natureza tem fim. E nem começo.

É tudo assim. Então, num dia nostálgico e cinza como hoje, retornemos a 1960.

Quatro amigos, nos havíamos conhecido na Editora Outubro, na R.da Mooca. No início, não era ainda amizade, mas simpatia, ou afinidade de interesses e aspirações artísticas. Estivemos no Martinelli por dois pitorescos anos, convivendo com a exótica fauna que o freqüentava.

Era uma coexistência pacífica, na qual formávamos um grupo estranho, e que talvez por isso, destoasse e chamasse a atenção dos decadentes e fadados à extinção habitantes do prédio e sua vasta população flutuante. Que incluía malandros, prostitutas, jogadores, gigolôs, alfaiates, dentistas, bancários e outros representantes de classe, lutadores de judô da Academia Ono... enfim, quase tudo que se possa imaginar. Assim, sentíamos-nos um pouco boêmios, também, participando deste bas fond.

Todos os quatro brilhantes desenhistas, éramos personalidades bem diversas. Dois deles eram investigadores de polícia bissextos que davam, algumas vezes, plantões no DEIC, mas tinham bastante folga para dedicar-se ao que realmente gostavam, o desenho. Um deles, pouco freqüentador do estúdio, tornou-se mais tarde diretor de um importante departamento da Editora Abril.

O outro, bem mais incomum, era um temperamental. De sangue espanhol, às vezes interrompia o trabalho para sapatear um passo doble, exclamando: 

- yo soy gitano! Olé!

Ou invadia a sala e disparava, inesperadamente, seu 38 contra o céu do Anhangabaú! Era muito divertido e grande contador de piadas, embora mergulhasse, às vezes, em profunda melancolia.

Restávamos eu e o Julio, talentoso nissei que era o xodó da Editora, pelo esmero com que realizava um pequeno número de páginas, embora isto lhe rendesse ainda menos dinheiro do que o pouco que era habitualmente pago. Éramos os mais jovens e inexperientes, e contemplávamos com espanto aquele admirável mundo novo que tínhamos, diariamente, pela frente.

Chamemos nosso amigo andaluz de Arellano, pseudônimo que usava às vezes em suas histórias.

Embora fosse casado e pai de três filhos pequenos, era um boêmio nato, sendo assim nosso guia e mestre pelas ruas tortuosas do velho Centro. Graças a ele conhecemos recantos da São Paulo dos anos 60, que já não mais existem. 

A Caverna Santo Antonio, o Franciscano, a Adega Lisboa Antiga, onde confessou, depois de umas que outras, que seu pai, velho anarquista, havia se enforcado em sua aldeia natal. 
E a ele coubera retirá-lo da forca e dar-lhe sepultura. 
Talvez fosse esta a maior razão de sua ocasional depressão.

Estivemos umas vezes num bar, no Lgo. São Francisco, que só servia sardinhas na brasa, acompanhadas de cerveja. E num bilhar da Pça. da Sé, onde o chopp corria solto. Ele tudo sabia e tudo provara, ali no Centro.

Ou caminhávamos, sem nenhum medo, pelas vielas e botecos da Boca do Lixo, encontrando, às vezes, algum habitante do Martinelli, como o alfaiate João Dias, jogando bilhar.

Mais tarde, os caminhos dos quatro divergiram e nossa sala, a 1922, esquina da S.João com Libero Badaró, foi fechada.

Julio e eu fomos para uma cooperativa de Porto Alegre, fundada pelo governo Brizola, que parecia a salvação da lavoura para o desenhista nacional. Mas, rapidamente, revelou-se só demagogia e corrupção. 

Fiquei um ano por lá, e quando as coisas já estavam ficando desesperadoras, surgiu-me a oferta de um bom emprego numa multinacional, uma grande agência de propaganda paulista. Lá estava trabalhando o bom Arellano, que foi quem me recomendara.

Fiquei ali quatro anos, depois surgiram propostas melhores, e em outro emprego, tive a alegria de retribuir o favor a Arellano, levando-o para trabalhar no meu setor. Mas notei que ele já não tinha mais o brilho e a irreverência de outros tempos, era mais calado e submisso. Fora-se a verve e o fogo dos olhos.

Mudei novamente de firma, e ele continuou por lá e não mais nos vimos, embora ainda desse seus plantões no DEIC, pegado a minha nova agência.

Numa tarde, era véspera de Ano Novo, eu estava só em minha sala. Quase todo pessoal já saíra para festejar, e eis que toca o telefone.

Era Arellano, para desejar um Feliz Ano. Fiquei comovido, mas achei estranho, pois há muito não nos falávamos. Batemos um bom papo, e como o ano que se iniciava era 69, ele ainda foi irônico, na despedida. Como nos bons tempos. 

Fui para casa e a sensação de estranheza me acompanhava. Passou o feriado. Estou novamente só em minha sala, e o telefone soa. Era sua esposa, convidando-me para a Missa de Sétimo Dia.

Meu amigo não conseguira encarar o ano que se avizinhava, e suicidara- se, naquela mesma tarde de nossa conversa. Tinha 35 anos, e uma vida de promessas pela frente. Senti-me, novamente, como nos tempos do Martinelli, adolescente e perplexo ante nosso absurdo mundo.

Pelos corredores do Martinelli

O Martinelli, em 1960, era um burburinho, um entra-e-sai de pessoas, sem o menor controle. Podia-se entrar pela São Bento, pela Líbero Badaró ou São João, pela porta giratória do Hotel São Bento. Numa das vezes que entrei pela R.São Bento, o ascensorista, desconhecido e sem uniforme (poderia ser um dos inquilinos), cantava a plenos pulmões "Rosa", de Pixinguinha. E como cantava, lembrando Orlando Silva!

Nossa sala, a 1922, ficava num canto do 19º andar, na face que dava para o Anhangabaú. Saindo do elevador e dobrando à direita, cruzava-se um portal escuro, e ali ficava um conjunto de salas, servidas por um banheiro em comum. Éramos quatro desenhistas, e nosso trabalho principal eram histórias em quadrinhos de terror para a editora Outubro. Nada mais apropriado então que aquele soturno ambiente.

Fizemos amizade com alguns dos vizinhos. O Dr.Moura, veterano dentista, ótima pessoa, mas com a visão de uma toupeira. Olhava uma boca toda cariada e achava perfeita. O alfaiate João Dias e o cego, mas espertíssimo Ito, comerciante de materiais de limpeza.

Ito tinha sob sua custódia trabalhos paralelos, agregados que distribuíam seus produtos, e dois irmãos encanadores, que não sei porque se relatavam a ele. Eram baixinhos, mas de braços colossais, moradores de Ferraz de Vasconcelos. Um deles agenciava sua própria mulher, que era prostituta. Não a conheci, mas ele orgulhava-se da beleza e competência da "patroa", na mais velha das profissões!

Eu era muito jovem e inexperiente e o Martinelli parecia-me a Babilônia. Gays engravatados batiam à porta e tínhamos de ter muito tato para dispensá-los numa boa. Vendedoras de cafezinho vinham oferecer seu produto, e também serviços extra, também quentes.

Romances baratos inevitavelmente surgiam, pois éramos jovens e talentosos, e algumas garotas posavam como modelos para nossos desenhos. Apesar do clima de bas-fond, nunca tive medo dali. Algumas vezes trabalhava até altas horas. Ia pegar uma condução para a Barra Funda, onde morava, sem nenhuma preocupação. Ao sair pela Líbero Badaró, sempre me deparava com o luminoso em neon da "Salsicharia Especial", onde dois porquinhos disputavam, para sempre, uma fileira de salsichas.

Ganhava-se pouco, mas era muito pitoresco e divertido. Um de meus colegas, investigador bissexto da polícia, às vezes sacava seu 38 e disparava para o espaço, através das largas janelas. Outro deles, que morava na periferia de Santo André, sem dinheiro porque a editora atrasava o pagamento, dormiu ali algumas frias noites. Dobrava as roupas, para não se amassarem, embrulhava-se em jornais e recolhia-se embaixo da prancheta, tentando evitar o vento gelado que subia pela São João. Prenunciava assim os sem-teto que viriam, nas décadas seguintes. Felizmente seu trabalho e esforço tiveram sucesso, mais tarde.

Embora muitas vezes almoçássemos fora, como no Restaurante Dom, bom e barato, na R.Aurora, atrás da Pça. da República, podia-se comer no Prédio mesmo. Haviam bares e lanchonetes, e não me lembro de ter passado mal com a comida.

Com tanta gente de dentro e de fora, ainda assim sentia-se no prédio um clima de comunidade. Parecia haver uma estranha ligação entre pessoas tão diversas, um ar de compreensão e tolerância. O denominador comum era o Martinelli, naquele tempo ainda imponente e venerável. Sua presença majestosa e severa era o que dava a todos, abrigados à sua sombra, esse sentido de identidade.

Perdido no Novo Martinelli

Contra minha vontade, perdi os encontros dos contadores de histórias realizados no Martinelli. Mea culpa. E tanto que eu queria voltar ao velho edifício! Mas lembrei-me de um desenhista amigo, Baraldi, que trabalha adivinhem onde?

Justamente no Sindicato dos Bancários! Combinamos então um almoço 
e uma jornada pelo Martinelli, para tentar reencontrar a sala 1922, perdida, como já contei, há 42 anos.

Primeira surpresa ao entrar no prédio: os Bancários têm entrada separada, diferente do que era antes.E agora ficam onde no meu tempo era o Itau.

Mas Baraldi desembaraçou-nos na severissima portaria do prédio, tão diferente do descontrole dos anos 60. E, dos corredores agora limpíssimos e bem iluminados pelos antigos lustres, subimos ao 19° andar.

Apesar de ter bom senso de orientação, senti-me num labirinto. 
O prédio todo virou, parece, uma série de enormes repartições burocráticas. O próprio Sindicato dos Bancários também é isto, um andar inteiro de divisões e sub-divisões.

No 19° andar agora é o Contru. Balcões e divisórias por todo o andar, como num conto de Kafka. Mas, ao contrário deste, todo um imenso salão, claro e limpo, asséptico. E não conseguimos seguir adiante. Trincheiras burocráticas de balcões que não poderíamos escalar.
Cruzar aquele espaço até o canto da Libero Badaró , onde fora nossa sala, seria missão digna de um Indiana Jones.

Onde foram as salas individuais, numeradas e unidas por escuros portais e misteriosos corredores? Tudo aquilo que era pitoresco e decadente desapareceu, os espaços vazios e silenciosos substituíram o burburinho e os tipos suspeitos. Quase poderia haver uma placa de "silêncio", como nos hospitais.

Não, a sala 1922, sede do nosso movimento de nacionalização dos desenhos, não existe mais. É curioso que queríamos formar um órgão oficial, uma associação de desenhistas.

A burocracia foi muito além,o local do nosso humilde plano desapareceu, absorvido por algo parecendo a esplanada dos ministérios. Fomos parar em Brasília!

Quebrando a circunspecção do lugar, fotografamos lustres, velhos corredores e janelões, coisas que remetiam ainda ao Martinelli de 40 anos atrás. Escrivões e meirinhos nos olhavam de soslaio, sacudindo as cabeças, como se vissem fantasmas de outra era, o que não deixava de ser verdade...

Foi pena não ter podido subir aos terraços do Comendador. Hoje estavam fechados. Fica para outra, com mais preparo e antecedência.

Quem esperou 40 anos pode aguardar um pouco mais.

Tudo bem...no ano que vem

Ainda falta um tempinho, mas logo ele está aí. Este ano, praticamente, já acabou.
Aqui as coisas, freneticamente, vão se adiantando às suas datas respectivas.
Tem gente que andou comprando para o Natal já em Setembro. Há muito as varandas exibem seus Papais Noeis puxando o indispensável saco.

Logo inicia-se a contagem regressiva para um novo ano, mais um!
As televisões varrendo o mundo em sentido leste-oeste, começarão a mostrar as comemorações: na Nova Zelândia, na Austrália, e por aí vai. Implacável, o Ano Novo começa a sobrevoar o Japão, China, Rússia e avança sobre a Europa.
Uma cruzada sobre o Atlântico, e estará, mais uma vez, sobre nós.

Novamente, uma época de reflexão e balanço, e, inevitavelmente, começamos a pensar nos fantasmas dos finais de ano que se foram. Alguns discretos e intimistas, outros ruidosos e cheios de brilhos e cores.

Uma vez, a Criação da grande agência onde eu trabalhava resolveu fazer uma bela festa conjunta com outra, esta menor, mas também cheia de talentos, muitos dos quais amigos em comum. As duas equipes de Criação reuniram-se no andar superior do Piazza Colonna, na R.Maranhão, e lotaram uma enorme mesa.

Após as primeiras e carinhosas palavras de confraternização, surgiu de profundezas insondáveis um inesperado, mas sutil e venenoso espírito de rivalidade. Não estava no programa, mas já existia, sub-repticiamente. Animados pelos primeiros e fartos comes e bebes, as equipes passaram a se desafiar, cada qual oferecendo à outra rodadas de drinks sucessivamente mais finos, raros e caros.

"-Olhem, seus michos, o que o nosso pessoal costuma tomar!"
"-Sambuca? Isso é uma droga!""-Jack Daniels? Blearrgh!"
O Grande Chefe,trabalhando agora na outra equipe, inquiria junto ao garçon:"-Napoleón? Mas isto é caro?" "
-É muito bom, senhor!" "-Não interessa, se não for caro eu não quero!"
Nesta altura, achei que a coisa estava passando dos limites, e retirei-me, sob vaias.

Como contraste radical, lembro uma outra passagem de ano, bem anterior a esta.
Meu amigo Julio Shimamoto,que tinha feito parte da turma do Martinelli, ligou-me, no meio da tarde:"-Como é, vamos fazer um brinde?” Ele era diretor de arte numa pequena agência na R.Amaral Gurgel.
Eu estava de férias coletivas, e assim fui para lá. Atravessamos a rua, e nos abancamos no lugar mais decente o possível, nas redondezas: uma grande padaria,em frente à "Casa do Artista", loja de desenho e pintura, da R.Major Sertorio. 

E ali, no balcão, com sanduíches e refrigerantes, fizemos nossa simples, mas sincera comemoração.
Talvez com outro nome e donos, a padaria ainda existe, e nossa amizade também!

Tantas lembranças de finais de anos, alguns quase totalmente esquecidos. E sempre a mesma esperança de, magicamente, acordarmos, na nova manhã, melhores e num mundo mais tranqüilo.
Que assim seja!

Dr. Jeckill e Mr. Hide

Publicitário sofre! Trabalhei em muitas agências, algumas das maiores de São Paulo e do Rio. E quanto maior, mais aumenta a disputa por dinheiro, poder, prestígio. A concorrência com outras agências torna-se uma guerra entre nações.

Talvez por isto muitos donos, ou diretores, fiquem tão neuróticos, ou mesmo enlouqueçam. Entre muitos que conheci, marcou-me especialmente a figura de um deles.

Quando o conheci, ele era diretor de criação de uma grande agência nacional, e eu, um jovem diretor de arte, promissor, mas ainda pouco experiente. Seu mau humor era temido por todo o pessoal e o ambiente bastante desagradável, quando ele lá estava.

Infelizmente coube-me acompanhar umas fotos de moda, num sábado.Tudo correu bem, e acreditei que o resultado fosse agradar, até mostrar-lhe as provas em preto e branco.

Por estar trabalhando num sábado, ou por outro motivo, o homem estava com a "macaca". Olhou as fotos enfurecido, babando de ódio. Vociferava desaforos, como - "nunca vi tanta falta de imaginação na minha vida!" Saí dali arrasado.

De tão surpreso, não conseguira reagir à violência da agressão. E ainda faltavam as fotos em cores, que viriam na segunda. - Caramba, pensei - se esse miserável repetir a bronca, vou dar-lhe um murro e peço demissão, mesmo sem destino e dinheiro! Nunca passarei outra vergonha destas na vida!

Segunda feira, mostro-lhe a fotos coloridas, e ele achou tudo bom. Vá se entender! Assim, permaneci mais dois meses ali, mas só pensava em sair. Finalmente, pintou uma proposta de outra agência, e me demiti rapidamente.

Muitos anos se passaram. Passei por outras agências e tive, creio, uma carreira bem sucedida e premiada. Chegou a hora de me aposentar. Vi-me sem emprego, e considerado "velho" para os padrões das agências atuais, com criadores na faixa dos vinte anos.

Toca o telefone, e era meu antigo algoz. Há vários anos era do dono de agência, ia indo bem e queria que trabalhasse com ele.

Aceitei, apesar das advertências de amigos - "o cara está muito neurótico; fulano, que você vai substituir, saiu de lá após chegar às vias de fato com ele!" - Bom, respondi, estou desempregado. Se brigar com ele, volto pra rua, onde já estou, e pronto.

E assim trabalhei lá por dois anos. Demo-nos relativamente bem, foi um bom período, e tive tempo para entender melhor o cidadão. No fim do ano fez-me acompanhá-lo na escadaria de saída, e cobriu-me de elogios, dizendo ser uma felicidade contar comigo e outras coisas mais. Despediu-se com um grande abraço, e ele estava a ponto de chorar. Nunca outro patrão tinha me ofendido tanto e depois elogiado assim.

Compreendi então o que era a ciclotimia, a personalidade bipolar, que sem aviso, leva a pessoa da euforia ao ódio e à depressão. Na minha frente estava um exemplo vivo dessa disfunção cerebral. Nunca se sabia quem estava ali, Jeckill ou Hyde, o bom médico ou o monstro.

Conviver com pessoas assim é andar numa montanha russa, e chega uma hora que não se tem mais paciência para isso. Há alguns anos saí de lá, mas ele continuou me estimando, e de vez em quando, chamava para um trabalho extra.

Por sorte, nas vezes que fui, era o Dr.Jeckill quem estava presente, e era só gentilezas. Mas, nunca se sabe o mal que se esconde no coração humano. Quem disse isso? O Sombra, com certeza, sabe!

Um cego de visão

Quando trabalhei no Martinelli, por volta de 1960, tinha um vizinho muito curioso. Isto não seria novidade, o prédio todo era uma galeria de tipos excêntricos.
Seu problema era ser cego. O nome, Shoji Ito, mais conhecido por "Seu Jorge" pelos freqüentadores do prédio.

Mesmo cego, agia com desenvoltura, nas profundezas de seu labirinto de escuridão.
Sondando o caminho com sua bengala branca, como o sonar de um morcego, nunca se perdia, com seus sentidos restantes aguçadíssimos. Inclusive para a percepção da personalidade dos outros. Ninguém o enganava.

Meus amigos e eu ficávamos boquiabertos ao vê-lo tirar o dinheiro, sempre exato, da carteira.
- Ô, Ito, você não é cego coisa nenhuma, disse-lhe uma vez. Ele se limitava a rir, parecia sempre de bom humor. Mas tinha seus momentos de revolta, contra a injustiça que a vida lhe infligira.
Não nascera assim, a cegueira iniciara-se lá por volta dos oito anos.
Então sabia o que estava perdendo, um mundo rico e colorido. Procurara consolo, inutilmente, em várias religiões.

De sua mesa, comandava um pelotão de agregados, que vendiam seus produtos de limpeza e vinham prestar-lhe contas. Ele começara nas ruas, vendendo vassouras e produtos, amparado por um ajudante. Ainda hoje existem cegos que trabalham assim.

Entre sua equipe haviam dois irmãos encanadores, Antenor e Dagmar. Baixinhos, mas com bíceps de Mike Tyson, eram também muito diferentes. Antenor era trabalhador e correto, e Dagmar um malandrão, que cafetinava sua mulher, segundo ele meretriz de muita beleza e competência.
Coisas do Velho Martinelli!

Ito conhecia todo mundo, inclusive e intimamente, todas as mulheres do pedaço.
Dava conselhos a mim e Shimamoto, colega de estúdio, ambos muito jovens e inexperientes:
- Com aquela ali, não! Aquilo não vale nada!

Às vezes, o acompanhávamos até seu ponto de ônibus, na Casper Libero, defronte à Gazeta.
Ali, no Bar e Lanches Conceição, muitas vezes ele comia e tomava suas cervejinhas.
Às vezes, passava da conta, e os donos, simpáticos portugueses, colocavam-no no ônibus, onde o motorista, também seu conhecido, o deixava bem em casa, na Zona Norte.
Passei hoje por ali, vindo da Pinacoteca, e o "Conceição" continua, como há quarenta e tantos anos atrás!

Quando a cizânia instalou-se em nosso estúdio, e Shimamoto e eu fomos expulsos, o bom Ito nos acolheu, com pranchetas e armários. Logo a seguir, ousadamente, candidatou-se a deputado!
Isto ocorreu em 62, enquanto eu estava em Porto Alegre.
Não foi eleito, e isto deve ter sido um grande baque. Enquanto tomávamos outros rumos, Ito desapareceu. Não ouvi falar mais dele, até dois anos atrás.

Então, eis que ele me telefona! Pelo expediente duma revista tinha descoberto o Shimamoto, que lhe deu meu número. Casado e tranqüilo, vive num condomínio em Cotia, aplicando acupuntura e a massagem "Ama", tradicionalmente executada por cegos no Japão, onde fora fazer o curso.

Dizem que o pior cego é o que não quer ver. Tanta gente, com boa visão e enxerga como uma toupeira, diante do fabuloso Ito.

Os eternos desconhecidos

Eu não sei donde eles vem.

Se são ETs, ou os famigerados Homens de Preto que teimam em perseguir as testemunhas de avistamentos extra-terrestres. Sei que eles existem, e de vez em quando surgem, para nos deixar em total confusão e perplexidade.

Várias vezes aconteceu comigo, e não posso ser o único, nem estou louco. E olhem que tenho ótima memória, especialmente visual.

Lembro-me duma vez. Cursava ainda o colegial, e não sei porquê tomei um ônibus na Al. Barros, que naquele tempo tinha mão também em direção às Perdizes. Surgiu um rapaz, exclamando alegremente
- "Saidenberg! Como vai você?” 

Não lembrava jamais de tê-lo visto, quanto mais de seu nome. Toureei a conversa como pude, pois não sabia quem era. E ele desceu, felizmente, para nunca mais ser avistado.

Muitos anos depois morávamos no Planalto Paulista. Fui almoçar em casa, e passei por um vídeo na Av.Indianópolis. O estacionamento estava lotado, assim parei bem mais adiante. Vinha a pé pela calçada quando avisto em minha direção um cara alto, magro, de óculos e longos cabelos desgrenhados. A mesma coisa:- "Ei, Saidenberg! Que prazer em revê-lo!"

Novamente, o trabalho de desconversar sem ser grosseiro. Quem era essa pessoa, que fazia em meu bairro, onde ia andando pela avenida? Juro que também nunca o tinha visto. E não olhei para traz, mas é bem capaz de ele ter se desmaterializado, antes da próxima esquina.

Há pouco tempo, estava com minha mulher no Shopping Market Place, para assistir um filme vespertino. No corredor quase se chocam comigo dois rapazes, trajando camiseta e bermudas. - "Saidenberg! Como vai? Que surpresa vê-lo aqui!" A surpresa era toda minha! Quem seriam? Disseram donde vinham: de uma corrida em Interlagos. Mas, para onde iriam? Para o desconhecido, talvez.

Como dizia Bento Carneiro, o "Vampiro Brasileiro" de Chico Anísio,
- "para o aquém do além, lá adonde que véve us morto!"

E eu que nunca fui de acreditar em bruxas! Pero que las hay,las hay.

Quando velhos amigos se encontram

Quinta Feira, noite de fim de ano. Passado o Natal, o shopping estava meio deserto.
A pizzaria , que não conhecia, era o ex Café Estação, simpática 
e a meia luz. Onde estariam eles? Bem à entrada, logo supus.

Vi um grupo, e não deu outra. Logo acenos, abraços... e histórias.
Quase todos vendo-se pela primeira vez, como se suas palavras ganhassem dimensão física, mas fossem de fato velhos conhecidos.

Lopomo, Chammas, Navarro e eu, até então personagens de ficção, mas totalmente reais. No calor de suas experiências humanas,
na espontaneidade de suas narrativas de vidas ricas e emotivas.

José Carlos Navarro e Miguel Chammas conheciam-se há quarenta anos, mas a impressão é que todos nós fôssemos assim. A Doris, cuja ausência foi sentida, disse que isso parecia cena de filme, e é verdade. Vou dizer até qual, para mim:

“C´eravamo tanti amati”(Nós que nos amavamos tanto), de Ettore Scola, com Vittorio Gasmann, Stefania Sandrelli e Nino Manfredi. Neste magnífico filme, o meu favorito, velhos amigos se encontram no final, após décadas de ausência, cada qual com seus caminhos, e descaminhos. E fazem um balanço de suas vidas, o destino de seus ideais e paixões. Foi algo mais ou menos assim.

Navarro teve de sair mais cedo, mas lá ficamos, animados e solitários personagens de um shopping deserto. E parlando e parlando... na escada rolante, nos labirintos do estacionamento. 
Um papo que parecia querer adentrar o ano que se aproximava.
Velhos conhecidos, de agora pouco, mas com espírito jovem e muito ainda a expressar pela vida. Um papo que tem de ser reatado.

Sete de Abril e cercanias

Há uns domingos estive naquela região. Tínhamos ido à Pinacoteca, mas por ser meio tarde o estacionamento estava lotado, e voltei à cidade. Estacionei no Lgo. do Arouche e toca a fazer um giro de reconhecimento pelo pedaço, que não via há muito. Depois de uma olhada na feira da Pça. da República, toda cercada por tapumes, adentramos a Barão de Itapetininga, região de caras lembranças para mim e Márcia, que, bem jovem, havia trabalhado na Telefônica.

Sendo domingo, estava quase tudo fechado, e mesmo os camelôs ausentes do local. Bastante desolado e triste, sendo portanto necessário um bom exercício de memória, para dar ao cenário o revestimento de charme e luxo que existiu em outros tempos.

Como um trabalho de arqueologia, ou paleontologia, dar ao esqueleto, que ainda existe, o frescor da carne, músculos e pele desaparecidos. 

Passamos por onde foi a bela Livraria Francesa, hoje numa casa da Vila Olímpia.
A Galeria Califórnia, fechada e com um trailer de bolsas e produtos de couro rústico na entrada, bem defronte onde ficava o Café Vienense, que lembrava a “belle époque”.
A galeria era um dos pontos vitais do pedaço. Lembro-me que entrando pela R. Marconi, havia no seu portal uma famosa casa de mate batido. Ao seu lado, a camisaria William, com cortes sob medida. E uma Kopenhagen.

Lá dentro, livrarias, o Mocambo, primeiro café expresso de S.Paulo, cinemas, uma casa de pérolas naturais na sua saída, à esquerda, para a Barão. Tinha até mesmo uma pequena boite, numa sobreloja, onde se podia dançar. Com o devido respeito, naturalmente. 

Bem perto, quase em frente, na esquina da D. José com Barão, o bar Cinzano, uma caixa de vidro, em três andares, com curiosos drinques como o Planter´s Punch, que tomei certa vez com meus colegas de Mc Cann. Na esquina oposta, mais uma Kopenhagen. No meio da quadra, a alfaiataria Minelli, freqüentada por astros da TV.

Voltemos pela Barão e subamos a D. José, onde pontificava a luxuosa Old England, de roupas e acessórios masculinos importados. Bem perto, a doceira Cristallo, que no Natal lotava pelos seus panetones. Dobrando à esquerda, na Sete de Abril, o portentoso prédio dos Diários Associadas, onde trabalhei por quatro anos. Diante dele, o restaurante Costa do Sol, que servia bons pratos, como vatapá. Ao lado dela uma das Lojas Garbo.

Esquerda ou direita, saindo dos Diários? Continuemos pela Sete de Abril, rumo à Xavier de Toledo. Na Pça. D. José Gaspar o belo Paribar, com suas mesas na calçada, onde bebericava-se sem ser importunado por ninguém. Passando a galeria Nova Barão, o famoso Massadoro, onde se podia comer na sobreloja, mas era famoso seu balcão embaixo, com coxinhas, esfihas e foccacias. 

Numa outra e mais obscura galeria, quase em frente, ao lado de uma estátua de um operário, em bronze,que ainda existe, a turma da Rádio e Tv da agência ia todas as noites, e ali ficava, retardando ao máximo a volta a suas casas. 
Eu era solteiro, mas mesmo assim ficava só um pouco, pois nunca fui de grandes beberagens. Tomando a direita da Sete, passando a Telefônica e entrando na Bráulio Gomes, logo se avistava o Almanara onde certa vez, no balcão, bati um papinho com o elegante Sílvio Caldas.

Mais adiante, o Hotel Ca D´Oro, o pequeno restaurante Giovanni e logo mais a então charmosa Galeria Metrópole.

Mas não chegamos a rever nada disto. Na Sete de Abril, em direção República, sem-teto esparsos pelas marquises e calçadas, embrulhados em mantas ou cambaleando em meio às lojas fechadas. Apressamos o passo, então, para tomar uma cerveja com fritas num barzinho do tranqüilo Lgo.do Arouche, por conta dos velhos tempos.

Vila Olímpia, quem te viu e quem te vê

No site existem pessoas, como Mário Lopomo, que conheceram uma 
Vila Olímpia rural, casinhas em meio a chácaras e terrenos baldios. Eu ainda cheguei a ver algo como isto, ou pelo menos os seus resíduos.

Um lugar tão pacato que, creio, só pode se encontrar hoje algo parecido na periferia. Campestre, mesmo. Separado do também precário Brooklin Novo pelo córrego da Traição, uma trilha que viraria a monstruosa Av. dos Bandeirantes.

Mas isto foi só o começo. Em 91, minha firma transferiu-se para lá, para uma enorme pirâmide de vidro na Gomes de Carvalho. Ainda restavam casinhas do antigo bairro, mas a pirâmide foi um dos marcos da corrida imobiliária.
Haviam poucos e pequenos restaurantes, geralmente de famílias que começavam a perceber as novas oportunidades, e ainda muitos botecos, como o do velho Seu João, na esquina.

De botequineiro acostumado a vender cachaça e cerveja, de repente Seu João começou a ter de adaptar-se aos exigentes pedidos de bom malte escocês, reclamado aos berros pelo Grande Chefe, vice-presidente de Criação de nossa empresa e seus eternos lobistas, que o seguiam até altas horas da noite. Nunca mais as coisas seriam as mesmas.

Nos meados dos anos noventa, quando saí de lá, as coisas ainda guardavam, inclusive no trânsito, um pouco da antiga tranqüilidade. 
Hoje, porém, tive de levar meu carro á sua concessionária, na Juscelino Kubistchek. Para evitar a Bandeirantes, tentei por dentro da Vila Olímpia.

A R. Ribeirão Claro, estreita, cheia de cruzamentos, e com estacionamento permitido nos dois lados, é , por absurdo que pareça, a principal via para atingir-se a Hélio Pellegrino. Nem deu para entrar nela, tão parada que estava.

Desci então a Gomes de Carvalho, e entrei na R. Funchal.
O trânsito estava desimpedido, mas fiquei atônito com o número de pessoas nas calçadas e cruzando as ruas, agora irreconhecíveis tal o conglomerado de prédios comerciais. 

Multidões famintas, pois era hora do almoço, buscando desesperadas uma vaga num dos inúmeros restaurantes, bares e lanchonetes, ainda assim insuficientes para tamanho apetite. Não me lembro de ter visto tanta gente em S. Paulo, a não ser nos bons tempos do Centro lá nos anos sessenta.

Guiando cautelosamente, para não atropelar ninguém, consegui chegar a ao início da Juscelino. Parar na concessionária? Nem pensar, os inúmeros carros entupindo a entrada, esparramando-se pelas calçadas. Seria um ato de Kamikase ou homem-bomba. 

Por sorte, meu problema mecânico não é serio, mas não pode ser resolvido por nosso mecânico de tantos anos. Assim, vou ter de marcar hora na concessionária, também despreparada para estas multidões, e esperar, como num posto do INSS...sabe-se lá até quando!

Em poucos minutos de percurso, um instantâneo do que virou nossa Vila Olímpia.

Se Oriente, rapaz!

Um de meus primeiros contatos com o bairro da Liberdade foi nossa ida ao saudoso Teatro São Paulo, por volta de 1957. Fomos, minha mãe, irmão e eu à então bela Pça. Almeida Jr., hoje parecendo torada ao meio por uma foice.

A peça era “O Tempo e os Conways”, de J. B. Priestley. Nessa curiosa obra, havia uma inversão: o 3° ato tornava-se o 2º, e este ficava para o final. Assim, no meio da peça já se sabia o que iria acontecer, e o final ficava com as expectativas das ilusões, já ironicamente frustradas.

Brincadeiras com o implacável Tempo, que por sua vez diverte-se conosco, pois sempre leva a melhor. A Liberdade...pouco depois arranjaria lá um de meus primeiros empregos, um meio período numa pequena firma de desenhos animados, dos sócios Nanini e Spada. Ficava numa sobreloja, quase no final da R. da Glória.

Descia do ônibus na Pça. do Patriarca, e aí tinha de decidir-me: 
de bonde ou a pé? 
A pé, sempre se economizaria uns trocados, mas talvez o ganho virasse prejuízo, pois lá se iam as solas dos sapatos. Descia a R. da Glória, vendo na passagem à direita uma curiosa loja de aparelhos científicos, retornas, provetas. Passava pela já citada Pça. Almeida Jr., e estava quase no trabalho.

Saí dali algum tempo depois e meu próximo contato com o bairro foi por meio de meu amigo Shimamoto. Para lá fomos, Shima, Lyrio Aragão e eu, companheiros de trabalho no Martinelli, para assistir no Cine Niterói, R. Galvão Bueno, um filme de samurai. 
Era sobre o famoso daimyo (senhor feudal) Nobunaga Oda, a quem os antepassados do Shima haviam servido como samurais, no Japão do século XVI. Hoje, em lugar do cine, há um supermercado oriental.

Nosso bom nissei depois nos levou ao primeiro contato com a comida japonesa. Uns motis e mojus, bolinhos de arroz e feijão, numa vendinha da R. dos Estudantes, quase em frente ao Beco dos Aflitos, com sua igrejinha centenária ao fundo.

A Liberdade sempre me pareceu exótica e fascinante, com suas lojas, restaurantes, e odores de comida. Bem no Largo havia um restaurante chinês, com seus patos laqueados dependurados na vitrina. As escuras livrarias, com livrinhos coloridos e mangás indecifráveis. Na esquina com a R.dos Estudantes, a Tsuruya No Futon, ou seja, Casa Grou de Acolchoados, muito tradicional.

Na esquina da Vergueiro a estranha Igreja dos Enforcados, pequena, escura, com centenas de velas iluminando o soturno ambiente. Logo à frente, no Lgo. da Pólvora, a curiosa estátua do porquinho sendo agarrado por dois meninos, que hoje está no Ibirapuera.

Por algum tempo, essas foram visões só de passagem, clicadas do bonde que subia a Vergueiro. Eu não tinha muitos motivos para voltar à Liberdade, mas isso iria mudar. 

Nos anos 80 passei a me interessar pela filosofia do oriente, pois já muito antes admirava sua arte. Começou então minha “fase zen”. Quem diria que um dia eu iria vestir o branco kimono e o negro hakamá(calça larga), como um samurai daqueles filmes, empunhando uma espada de bambu? Coisas do Tempo... mas isto é já uma outra história.

Liberdade, Liberdade!

Falei na última vez de como conheci o bairro da Liberdade. 
Em várias épocas, e situações, sempre foi um lugar extraordinário para mim.
De quando em vez ia ver suas interessantes lojas, como a Minikimono, que exibe até hoje a impressionante réplica duma armadura samurai completa. Ou comprar as belas e simples lanternas de papel sanfonado branco, para nossa sala. Ou grotescas máscaras de papel machê. 
Um outro mundo, mesmo.

Houve um tempo em que, estudando o budismo, resolvi praticar uma das várias artes marciais do Japão. Foi por volta de 84. 
Um anúncio, numa loja, levou-me até um idoso e emburrado relojoeiro da R. dos Estudantes.

Que ninguém diria ser um competente mestre de Kendô, a arte de manejar a espada.
A sua esposa estranhou - mas, é para seu filho? Não, apesar da idade era para mim, mesmo. Logo depois, imaginem-me saltando e atacando com uma espada de bambu, aos berros, numa sobreloja da Galvão Bueno, esquina com Américo de Campos.....pois é. 

Tive aulas por alguns meses, mas era um esporte demasiado nipônico, para mim.
Mesmo as ríspidas ordens eram berradas em japonês, com rigidez militar. E acabei desistindo.
Depois disso, treinei karatê, por pouco tempo, pois meu menisco dançou, num movimento mais brusco, que passou desapercebido até começar a doer, em casa.

Não me dei por satisfeito, e finalmente acabei me encontrando na prática do Aikidô, considerada a mais difícil das artes marciais japonesas. Não foi na Liberdade, mas no CAOC, centro esportivo do Hospital das Clínicas, sob o comando do Sensei (mestre) Severino, faixa preta e ás no ofício. Esquivas, torções, cambalhotas... era muito legal!

Foi uma bela temporada, e ali treinei por cinco anos, até a mudança de minha firma, de Higienópolis para a Vila Olímpia, impossibilitar a continuidade. Agora, perto de casa, estou voltando a treinar.

Continuamos indo à Liberdade, seja para comprar seus produtos típicos na feira dos domingos, seja para ver belas festas, como o aniversário de Buda e a Tanabata Matsuri, a Festa das Estrelas, em julho. Neste fevereiro temos a celebração do Ano Novo Chinês, dias 10 e 11.

Lá estaremos, para ver os coloridos dragões dançantes e os leões acrobatas.
Como aconteceu ano passado, festa da qual pintei uns quadros. 
Como dizem os chineses, é melhor uma imagem do que mil palavras, e colocarei as ilustrações no site, logo que der.
E viva a Liberdade, ainda que tarde!

O feitiço da Vila

Vila Buarque, como o Chico... que aliás começou sua carreira nos barzinhos dali, redutos de estudantes da Maria Antonia, como o “Sem Nome”.

A Vila Buarque teve seus dias de fascínio também para mim, desde que entrei para a MPM, em 75. Ela dava seus primeiros passos como grande agência de publicidade paulista - pois já era grande no Sul-, ali num modesto prédio da R. General Jardim. 
Eu trabalhava em estado de graça. A nossa pequena equipe realizava grandes e prestigiosas campanhas quase sem se dar conta disso, tão fácil e naturalmente decorriam os trabalhos.

Sempre brincando e fazendo zombarias mútuas, somente vim a me inteirar da importância do que havíamos feito em 77, tal o número de prêmios no Anuário de Criação, Festival de Veneza e Prêmio Colunistas.

Mas aí já era tarde, eu e outros membros da Criação já havíamos mudado de agência.
Mas foi bom enquanto durou... nosso prédio dava vistas para trás, na Major Sertório, ao famoso La Licorne, do outro lado da rua. Na calçada de cá, em frente, outra “boate menor”, o Big Ben. Junto a este, uma casa de cômodos onde os travestis estendiam suas perucas nas janelas, para secar. E ficavam por ali, os bustos nus, peludos, mas com seios! Minha sala dava para este lado, enquanto o estúdio mirava a Gen. Jardim. Era pitoresco, e com algum perigo. Mas era pouco: quando saímos às vezes mais tarde, na noite, para chegar à garagem, na Major Sertório, tínhamos de passar por um bando de travecos. Ficavam diante do Bradesco da esquina, altos, fortes e com perucas loiras. Com suas mini–saias, botas e blusas de couro preto, lembravam uma cena de “Cabaret”, ou andróginos astros de heavy metal.

Nossos almoços eram quase sempre festivos, graças à boa disposição de meu redator, Sylvio, a “Velha Serpente”. Era nosso mentor, e então íamos ao Roperto e ao Capuano, no Bexiga. Ou, ali mais perto, ao Kakuk e ao Giardino di Napoli.

Mas, muitas vezes, só subíamos a Gen. Jardim. Ali, na esquina com Martim Francisco, havia uma simpática lanchonete, que chamávamos de “Cadeirinhas na Calçada”.
O nome já a descreve, e quem chegava era só puxar uma cadeira, armar e logo seria atendido pela enérgica dona do lugar, com seus pratos árabes, esfihas, beirutes e sanduíches. 

Alguns de meus colegas, como “A Serpente”, não dispensavam um aperitivo, como a afamada pinga de Morretes. Depois ele se escondia em baixo de sua mesa, deitado numa taboa a que chamava “o catre”, e chegava a roncar.
Certa vez, o poderoso Patrão estava fazendo sua famosa rota de inspeção pelas salas, e perguntou - o Sylvio ainda não voltou? Embaixo da mesa, este se encolhia, mais ainda, como uma serpente.

Quando dava, eu percorria a pé as ruas da região, observando a antiga chácara de Dona Veridiana, hoje Clube São Paulo, só para homens. A Santa Casa, o Mackenzie, a Av. Higienópolis, as várias livrarias do pedaço.

Como disse, saí de lá por melhores salários. Mas esta época ficou gravada como a melhor de minha carreira, e podem imaginar minha alegria, dez anos depois, quando fui convidado a voltar. Mas o passado não se repete, por mais que queiramos. 
As coisas já não eram as mesmas na agência, e seus melhores dias já se haviam transcorrido.

Estava lá já há cinco anos, e quando pensava que agora sim, tudo ia melhorar, veio a notícia:
A agência, que não estava indo bem, tinha-se fundido com a Lintas, 
a agência da Lever. Isto de “fusão” é só um termo paliativo; tinha sido mesmo é vendida.

E agora, em situação precária e incerta, mudaríamos para um palácio de vidro, noutra vila, a Olímpia. Não ia dar certo... e não deu, mesmo!
Mas, isto fica para outra vez.

O feitiço da Vila II

Tanta foi a repercussão de meu “O feitiço..." que resolvi continuar evocando a magia daquele tempo, compartilhada com vários autores deste site.

Tudo se iniciou em 75, com minha quase miraculosa entrada para a MPM, ainda hoje lembrada com espanto, para um incrédulo, como eu. Mas, contei já sobre este caso em “Milagres do Dia a Dia“. E o milagre não foi, nunca, desmerecido.

A Vila Buarque foi, durante bom tempo, o centro de minha vida amorosa e profissional. A agência, lendária por sua Criação, e o carisma da boa equipe, era super bem recebida em todos os lugares que freqüentávamos, tendo praticamente cadeiras cativas no Giardino di Napoli, Kakuk e Piazza Colonna.

Os donos e garçons todos nos conheciam, e já sabiam até o que seria pedido.
Quanto certa vez, num anúncio comemorativo de um prêmio, a equipe posou toda para uma foto, esta foi tirada no Giardino, e por muito tempo permaneceu na parede dos fundos deste. Os clientes estranhavam:- mas o que faz essa turma aí?

Aí o Sylvio, sempre com sua verve de “Velha Serpente”, colocou uma legenda embaixo – “Côro Internacional: os famosos cantores de Scorcciacavallo”! 
Mas nem só de Piazza Colonna, Giardino e Roma vive o homem, então íamos também a lugares mais simples. 

As “Cadeirinhas na Calçada”, como já contei, onde a truculenta dona tratava aos berros seu amável e constrangido marido; a tradicional Confeitaria Little, que servia ótimos pratos do dia, que seriam degustados no balcão, ou, se necessário, na própria cozinha da padaria, entre fornos, chaminés e empregados se esgueirando ao redor.
A Little existe até hoje, e muito bem.

Uma vez fomos à lanchonete “Mulheres de Areia”, na Cesário Mota Jr.
Um desses estabelecimentos com nome de novelas, e que acabam desaparecendo com o fim das mesmas. A R. General Jardim, uma ladeira na sua parte após a Pça. Rotary, teve outras duas poderosas agências de propaganda, além da MPM.

Uma era a SGB, bem lá encima. E a outra, a velha Norton, sobre a esquina da Little.
Desta restou, creio, uma pequena parte, com o nome de Northwest.
Houve uma outra, se é que é possível classificá-la como agência; o apartamento de meu então amigo Classir, num prediozinho quase chegando á Amaral Gurgel.

Se não foi importante como agência, marcou minha vida por motivos bem mais emocionais: lá levava minha namorada para nossos momentos de paixão. Até que o Classir resolveu mesmo transformar o cubículo em escritório, e aí tivemos de procurar novas plagas.

Agora está me baixando a saudade desses lugares, da Livraria Martins, dos lanches simples no Sesc, da ótima Casa do Artista, com materiais para desenho. Tanta riqueza, que passou quase desapercebida , esparsa pelos anos.
E que agora pede para ser resgatada. Seus caminhos requerem um re-exame, em busca dos rastros perdidos do passado.

A volta do Feitiço da Vila

Quem se posta na esquina da Consolação com Cesário Mota Jr., bem perto do entroncamento com Maria Antonia vê um panorama bastante desolado. Ali mesmo, uma sapataria poular, uma banca de revistas, um pobre restaurante chinês e um borracheiro, mas ao se caminhar para a esquina vemos uma árvore meio desgalhada. 

Mas, brotando de seu canteiro, uma mirrada videira, que se enrosca e cobre a árvore toda transformando-a em algo mais notável. E dali, lutando contra o ambiente inóspito, chega a espraiar-se para o concreto pichado do muro vizinho, começando a colori-lo. Pouca gente, como sempre apressada, repara neste exemplo de teimosa resistência, verdadeiro símbolo de nossa cidade, lutando e evoluindo. 
Em que pesem todas as dificuldades, o caos generalizado, a sujeira e a poluição.

Para mim, a Vila Buarque começa ali. E este início já a define; o resto é conseqüência. Desçamos a ladeira da Cesário Mota e temos oficinas, estacionamentos, bares sujinhos freqüentados por estudantes, e a Praça Rotary, onde o caminhante tem um pequeno oásis, uma pausa verde no cinza generalizado.

Há algum tempo, era meio assustador. Sem-tetos caídos pelas calçadas, prenunciando seu grupo muito maior que se espalha debaixo do Minhocão, ali bem perto. Mas agora um posto móvel de polícia acabou com o problema, ao menos na pracinha.

Para mim, a praça, que abriga a Biblioteca Monteiro Lobato e já teve um teatro, em priscas eras, é o centro e o coração do bairro, bem pequeno na verdade. Subindo, pela General Jardim ou Major Sertório, já é um outro panorama, o da opulenta Higienópolis. Se passarmos ao longo da Santa Casa, estaremos em Sta. Cecília. Não é a mesma coisa.

E se seguirmos em frente pela major Sertório, atravessando a Amaral Gurgel, já será a Consolação, apesar do ambiente continuar pobre, com “boites” mambembes, lojas de desenho e a famosa Casa Aerobrás - que se iniciou na Sete de Abril, atrás do Mappin, voltada para o aeromodelismo.

Vila Buarque. Poucos metros quadrados, e no entanto, tantas emoções e momentos inesquecíveis. Um bom pedaço de minha já longa vida. 
Assim, também posso lhes dizer que, modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.

A deusa da minha rua

Há coisas que temos pudor em citar. Afinal, sou também um cara bem casado, e adoro minha mulher, romance que se estende há 33 anos. Mas, vi colegas de site citarem as “Anitas” de suas vidas, e a ausência desses finados amores sempre presentes. 

Sempre fui um romântico, e tive muitas paixões. Algumas delas impossíveis, para o momento. Este foi o caso de Wanda. Eu morava na R. Barra Funda, quase esquina da Cons. Brotero. Dobrando a esquina, lá no outro lado, fim do quarteirão, uma casa de fachada para a rua. Mas, com um grande balcão, como se usava, às vezes , naqueles tempos, fins dos anos 50. Lá morava a família de um dentista, placa na fachada e um Citroën preto, tipo “Sapo”, sempre parado ao portão.

Vim a travar um contato mais íntimo com um dos habitantes da casa, se é que pode falar assim de uma relação platônica, e totalmente muda. Numa das vezes que meu irmão e eu descíamos da missa dos domingos, na igreja de São Geraldo, Lgo. Padre Péricles, cruzamos com uma linda adolescente loira, cabelo curto Chanel, com o rosto redondo e enormes olhos assustados. Pois precisamente em mim é que foi recair esse olhar, e fiquei atônito. Muito pobre, e tímido, meu choque transmutou-se em paixão.

Não tardou para descobrir que Wanda era um dos prósperos habitantes do sobrado com balcão, e que sua mãe, viúva, fazia parte da Orquestra Sinfônica do Estado, como violinista.
Como descobri tudo isto, não sei, pois nunca chegamos a nos falar. Mas, quando ela surgia em seu balcão, lembrava-me Shakespeare, em Romeu e Julieta – “seu balcão é o leste, e Julieta é o Sol! ” 
Eu trabalhava num estúdio de flâmulas, e às vezes deixava-lhe algumas no portão, numa tímida oferenda.

Coisa de vizinhos, minha zelosa mãe chegou a conversar com a dela. E, tocando “casualmente“ na história, recebeu a resposta - “ele precisa caminhar muito, e então veremos”. Ou seja, cresça e apareça! Mas não havia chegado meu tempo de aparecer.

Wanda era sósia, uma gêmea mais jovem, mas idêntica, da atriz americana Shirley Jones, que estrelou musicais como “Carroussel” e “Oklahoma”.
Havia grande diferença de posses, a família dela poder-se-ia dizer rica. Como disse, nunca nos falamos, e nos nossos raros encontros, de passagem, eu sempre ficava atônito e confuso, pela sua inesperada aparição.

Creio que a última vez foi quando saía do Cine Metro, e deparo com ela à minha frente, acompanhada da mãe. Que fazer? Se fosse hoje, as coisas seriam bem outras. Talvez, como o verdadeiro Romeu, eu saltasse seu balcão para raptá-la. Mas, cada tempo tem suas mazelas, e suas conquistas. Eu tinha, mesmo, muito a caminhar.

Só que estes caminhos levavam a rotas muito diferentes. Nunca mais a vi, a não ser, ocasionalmente, nas fotos de Shirley Jones, que mesmo madurona continuou muito bonita.
Alguém no site levantou a questão - “E se...”

Mas tudo é “E se...“ na vida. Temos milhões de opções, que aparecem e somem à nossa frente, por acaso. 
A cada segundo, um monte de possibilidades, para decidir-se, talvez, por uma só. As coisas são como são, o resto é especulação. Como disse César, -“alea jacta est!” A sorte está sempre lançada, e não há volta possível. Nem nada para se arrepender. Creio que minhas decisões foram certas, e sigo em paz. Não sinto a ausência da minha “Anita”.
Desculpem, leitores.

Oswaldo Suarez, em pleno Bosque da Saúde!

Na passagem do Ano Novo de 1959, o modesto Bosque via, atônito, a chegada triunfal do vencedor da São Sivestre a uma de suas principais vias, a R. Visconde de Inhaúma.

Como o consagrado corredor argentino, hoje uma lenda em sua terra, depois de vencer a prova, tivera ainda fôlego para chegar ás ruas sem calçamento da velha Saúde?

Quem morava lá era minha esposa, inda uma menina. Mas não esqueceu a cena, o atleta de camiseta branca e calção azul, todo suado, transportado em triunfo pelas ruas do bairro pobre, como os santos das procissões que ali aconteciam tradicionalmente. Tão distante da sofisticação da Calle Florida, ou da Avenida de Mayo, com seu histórico Café Tortoni. 

Mas o fato é que ali estava e participou da ceia do Ano Novo. 
Tinha um amigo na rua, “Pepe”, “O Espanhol” e em sua humildade, concordara em visitar o bairro do conhecido. Foi uma glória, e se Maria Asunción já morava por lá, deve lembrar-se do fato. 

E mais, o pai de minha mulher, como conterrâneo de Oswaldo, pois era argentino de Rosário, foi levado a participar da comemoração. Como se estivessem todos no “barrio” operário de La Boca, ainda hoje famoso por sua pitoresca simplicidade.

Deve ter sido muito comovente. Eu cheguei ao bairro anos mais tarde, e conheci ali muito mais tristezas que alegrias. Mas foi ali que conheci Márcia, e então tive meus instantes de glória. No velho Bosque, como Oswaldo Suarez.

O verão sem fim

Este é o título de um livro de Hemingway, sobre uma temporada de touradas na Espanha. Mas bem poder-se-ia aplicar a São Paulo, sobre estes meses que passamos.
Talvez esteja ficando velho, e a memória me falhe, mas não lembro de coisa parecida antes. Não foi só o verão, mas, findo este, o outono, que entrou na mesma toada. Noites abafadas, tardes de ficar recolhido em casa, sob ventilação. 

Afinal, não moramos em Cuiabá, ou Salvador, e nosso agitado ritmo não pode ser bem exercido num clima destes. Cada vez que ouvimos falar em mudanças por aquecimento global, um paradoxal frio nos percorre a espinha. Que será do futuro, em que mundo terão de viver nossos filhos?

Infelizmente, somente agora a humanidade começa a ter um pingo de consciência do desastre, que, ao que parece, é mais iminente do que se supunha. Será mesmo? Ou não? Chegam notícias da invasão do mundo pelos carros chineses, a preço de banana, acabando com qualquer concorrência. Serão também vendidos nas galerias da 25 de Março e Av. Paulista? Invasão chinesa nunca foi coisa para brincadeiras...

Logo a China, conhecida há pouco tempo pela sua multidão de ciclistas, que nada poluíam.
E com certeza, nesse ritmo de Negócio da China, combustível e dispositivos anti-poluição serão as coisas menos relevantes. 
E o aquecimento, como ficará?

“Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já está terminando o verão, enfim”...
Brisas mais frescas começam a soprar, afinal, sobre São Paulo, e saindo-se às ruas pode-se sentir com prazer uma fina camada de umidade entrando pelas narinas. Lembro-me de colegas publicitários, que adoravam, ou assim o apregoavam, um friozinho. 

–“Finalmente, os ares da civilização”, diziam. E num dia de apenas 10 graus, saiam de casa em mangas de camisa. É verdade que, em alguns casos, a camada de gordura amortecia o frio, como numa foca. Assim não vale.

Era como se fossem londrinos, ou berlinenses, nascidos nos trópicos por mero acaso.
Esquecendo-se totalmente de que o verão na Europa pode ser terrível, ainda pior. Só quem não passou um julho em Sevilha, ou um Ferragosto em Roma, pode imaginar que nossos irmãos do Velho Mundo vivam eternamente de brisas.

Mas está mais fresco, e chove fininho. Talvez o outono tenha mesmo chegado para ficar, ou será um falso outono, como já tivemos falsos invernos? Se assim for, teremos perdido uma das mais belas, e agradáveis estações do ano. E todas as estações perdidas não têm volta.

Se esta rua fosse minha

Há algum tempo, o Sr. Johannes Luyten escreveu sobre sua rua de infância, e instou outros colaboradores a fazer o mesmo. 
Não posso fazer estritamente isso, pois nasci em Piracicaba, creio que na R. Morais Barros, velha ladeira que desemboca quase no Salto.

E nem morei lá, com dois anos de idade já começamos a nossa Via Crucis por diversas cidades, para onde meu pai era transferido. Assim, muitas ruas cruzaram minha infância, e a principal delas foi a Av. da Saudade, em Campinas. Mas existiu em São Paulo a minha primeira rua, simpática e inesquecível.

Isto foi no ano de 1946, quando meu pai foi chamado a trabalhar no Instituto Biológico. Assim, por um ano desfrutamos da então agradável cidade, que antes fora somente ponto de visita aos parentes daqui.

R. Vitorino Carmilo. Estreita e aprazível, situa-se na Barra Funda, sendo paralela à movimentada rua do mesmo nome. Ali nos instalamos numa pensão familiar, pequeno sobrado com jardim, que lá está até hoje, formando um conjunto com seus vizinhos semelhantes. Coisa de rua inglesa, difícil de ainda existir na São Paulo atual.

Nossa janela dava para frente, e todas as manhãs a ruazinha modesta e arborizada era acordada por um pastor de cabras e seu rebanho, tilintando seus chocalhos.
Não me lembro de ter provado tal leite, mas devia ter uma freguesia certa. Quase em frente, o Grupo Escolar Antonio Prado, onde tive meu primeiro contato com as tradicionais carteiras escolares da época. 

Mas eu já sabia ler quando lá entrei, e a ingênua professora pensava que eu decorava as leituras. Teria que ter, para isso, uma memória prodigiosa. Mal sabia ela que há um bom tempo tinha contato com os livros de Lobato, e nessa mesma pensão estava lendo “A Chave do Tamanho”, livro um tanto pesado e trágico, para uma criança pequena.

Na cidade quase desconhecida, amigos e brincadeiras limitavam-se ao pátio da escola, ou com meus primos na casa de minha tia Zilda, que morava no 272 da R. Albuquerque Lins, defronte ao Cine São Pedro. Ali era o ponto central da grande família de minha mãe.

Mas lembro-me que meu pai nos deu, a meu irmão e a mim, aeromodelos comprados na Casa Aerobrás, que ficava na Sete de Abril, atrás do Mappin. Nós éramos, como meninos da Segunda Guerra, fanáticos por aviação. Creio que meu avião era um AT–6, famoso aparelho de treinamento. 

Não voava, mas era muito bonito e colorido, com as estrelas verde-amarelas da FAB. Já o de meu irmão era mais simples, e leve, e voava movido a elástico. Íamos brincar de pilotos na ruazinha deserta. O de Ivan acabou-se espatifando nas árvores da Chácara Prado, atrás da pensão. O meu também acabou-se estragando, sem nunca ter alçado vôo.

Nossa grande diversão era ir ao belo Centro, limpo e tranqüilo. E, para nós, as grandes atrações eram suas lojas e as “leiterias”, num tempo muito distante de nossos fast foods. 

No corredor da pensão, a caminho de nosso quarto, a famosa estampa do Anjo da Guarda velava crianças que cruzavam uma pinguela, e esperávamos que sua proteção se estendesse a nós. No refeitório, asseado e calmo, puxando bem pela memória, lembro-me tomando refeições. Mas não de nenhum outro hóspede, seríamos os únicos inquilinos? 

No final do ano, retornamos a Campinas, com meu pai de volta ao Instituto de Sericicultura. Nem imaginava que, um dia, também eu viria batalhar pela vida, na nossa grande cidade.

Bar do Léo

O Léo está para as outras choperias como a Castelões está para as demais pizzarias.
São ícones, padrões para o restante do mercado. Não só pela tradição, mas pela qualidade que sempre exibiram ao longo de tantos anos.

Não sou botequeiro, nem chopeiro contumaz. Acho, que mesmo assim, posso falar do venerando bar, pois houve uma época em que almoçava nele quase todos os dias.
E dele recebia cartões de Natal em casa, com a marca do leãozinho.

O local onde se situa parece estranho, em plena Boca do Lixo. Esquina de Aurora com Vitória... região antiga e feia, bar sem estacionamento próprio, pequeno e apertado.
Mas talvez essa simples autenticidade seja seu melhor atributo, já que seu ótimo chope tem rivais à altura, pela cidade.

Conheci-o em 68, quando fui trabalhar na agência Lintas, pequeno prédio na esquina de Brigadeiro Tobias e Senador Queiroz, pegado ao DEIC. Não havia muitas opções de almoço por ali, e o Léo, bem perto, era portanto sob medida.
Quando nos abancávamos nas mesas coletivas, éramos recebidos como amigos. O hoje lendário garçom Luís, baixinho, cabelos já brancos nessa época e grossas sobrancelhas negras, chamava todos pelo nome. Eu era o Xará.

Nas paredes e prateleiras, bolachas e canecas de chope de todo mundo. Atrás do balcão de mármore, a enorme chopeira de latão dourado, com uma longa serpentina indo direto às torneiras, manejadas à perfeição pelo Laércio. No alto, vitrais coloridos, para alegrar o ambiente austero.

Tinha então uma cristaleira no centro do salão, repleta de velhas canecas. Eu achava tão típico, e tão ligado à nossa firma que propus que a foto da equipe fosse tirada lá, quando de um Natal. Mas acabei não sendo ouvido.

Era freqüentado por uma estranha e variada fauna, e também muitos eram clientes diários. Waldick Soriano, de chapelão e óculos escuros, sempre ao balcão. Investigadores de polícia, atrizes pornô, pessoal vindo das produtoras e distribuidoras de filmes, outra tradição do bairro.

O menu, simples, variava o prato a cada dia, sendo o mais o concorrido seu famoso bacalhau das sextas feiras. Mas os ótimos canapés de entrada, mesmo agora, dão-me água na boca. E creio que as coisas continuam as mesmas, embora há muitos anos que não compareço. Num sábado, fiz uma tentaviva. Passei de carro com a família. Mas era tal o burburinho e a multidão, mesmo de pé, fora do recinto, tomando a rua, que acabei desistindo.

De outra, confundi-me com o emaranhado de estreitas ruas, de tristes fachadas, segui em frente e fomos comer em outra freguesia. Fomos 
a sucedâneos, bares inspirados pelo Léo: o Bar do Nico e Monumento, no Ipiranga, o Frederico, em Moema, que tem na parede a caricatura e a foto do garçom Luís, quando de uma visita. Mas ao Léo, mesmo, não mais.

Mas ele continua lá, como sempre foi, numa esquina perdida e decadente da minha memória.

Um colégio à meia luz

Quando viemos de Campinas, encontramos aqui uma situação bem diversa.
Lá ficou o majestoso “Culto à Ciência”, colégio dos ricos e bem nascidos, que como tempo ficariam ainda mais ricos, predestinados para tal desde o berço de ouro. 

E de fato, as notícias que tive, recentemente, dos colegas mais chegados, foram notáveis: um, desembargador do STJ; outros dois, luminares da medicina campineira; outro ainda, arquiteto e no terceiro mandato como prefeito de Mogi-Guaçu. Aliás, este foi o único a dignar-se a responder a mim, seu colega pobre dos bancos escolares. Eu lhes havia enviado a crônica que escrevi para este site, ”Amarcord" e acho que a maioria não gostou, pois satirizava os professores da tradicional instituição, orgulho da cidade.

Para meu irmão e eu, a luta seria bem diferente. Nosso pai morrera muito jovem, deixando algum dinheiro, que se esgotaria rapidamente, se não achássemos meios de subsistência.
Mas era necessário continuar estudando, e tínhamos de ser práticos. Conseguimos vagas num pequeno e quase desapercebido colégio perto de casa, o Presidente Roosevelt, ou Colégio de Aplicação, na estreita rua Gabriel dos Santos, que desce de Higienópolis para a Olímpio da Silveira.

Seus alunos correspondiam ao prédio; no curso noturno, eram obscuros habitantes da Capital, muitos deles já trabalhando, e tentando no estudo uma melhoria da vida.
Não havia ali tempo ou lugar para exibições de moda, como em Campinas, ou grandes farras. Nos filmes que vemos sobre os estudantes americanos, estes dividem-se sempre em “loosers” (perdedores), discriminados e inferiorizados, e os “winners”(ganhadores). Estes os ricos, belos ou atléticos. De vez em quando um “looser” enlouquece, pega em armas e sai matando seus colegas mais afortunados.

No Roosevelt não havia nada disto. Eram todos, por princípio, democráticamente “loosers”, e se quisessem passar a vencedores, seria necessário muito esforço e trabalho. Então não havia discriminações, só o fato de estar ali já significava ser um lutador anônimo, e a sorte estava lançada. E eram todos homens, as moças estudavam de dia.

Alguns professores eram bons, outros mais fracos. E mais uma vez, o sucesso dependia muito mais do estudante. A rua também compunha o ambiente: escura, arborizada, em grande parte residencial. 
Um misterioso clube noturno, sobrado bem próximo do colégio, quebrava o clima. Uma grande vidraça, velada por cortinas creme.
Mas com discrição, tudo à meia luz, e pouco se sabia dali, mesmo porque eram proibidas coisas assim perto de escolas. 

Quando saíamos dali, uma parada na pastelaria do outro lado da avenida, ou como certa vez, uma cervejada no boteco próximo, para desafogar. Diversões também modestas, e lembro que na minha estréia de bar, com pouca bebida, amarrei um fogo de ficar vendo o teto do apartamento girar como helicóptero.
Como festa de formatura, a turma foi comer uma pizza, perto da Pça. Marechal. E, filho ingrato, nem voltei para apanhar o diploma.

Meus colegas perderam-se na vida, continuando em sua maioria anônimos. Nelson Batista, Nelson Sasaki, Guilherme Isola Neto, Mauro Ramos, Kazuo Ueta, o Ferrara, que tornou-se coreógrafo de televisão... encontrei-me ainda algumas vezes com Batista, amigo mais chegado, mas depois a luta da grande cidade nos afastou, e não mais o vi, nem consegui contato.

O coleginho continua lá, tímido e encolhido quase na esquina. 
E embora não saiba mais seu nome, tenho certeza que prossegue na sua discreta tarefa de forjar mais trabalhadores. São Paulo, como a fornalha simbólica de “Metrópolis”, não consegue parar. Sua goela mecânica sempre escancarada, abocanhando, triturando, Baal sedenta de sacrifícios humanos.

Bota uma meia-sola!

Sempre apreciei bons calçados. Fetiche, dirão alguns. Mas tenho outra explicação, que vem de minha adolescência. Em verdade, é sempre fácil para a gente achar uma explicação, como fazia Freud. Mas creio ter minhas razões. Em Campinas, quando freqüentava o mais venerável e tradicional colégio público da cidade, as finanças da casa iam mal, não correspondendo a tanta pompa e circunstância.

Então, meus pais compravam-me sapatos com um nome armênio, Bogosian, Kherlakian, algo assim. Os benditos sapatos, de qualidade duvidosa, não podiam pegar uma chuva que a sola, mais parecendo papelão, inchava e começava a se desgastar rapidamente.
Para agravar o processo, eu muitas vezes descia do bonde na praça central e seguia a pé para casa, talvez uns dois quilômetros distante. Logo surgiam buracos na sola, como nas ruas paulistanas. E o remédio era colocar um forro de jornal dentro, para o vexame não ser total.
Por isto, assim que tive melhores condições financeiras comecei a comprar não só belos calçados, mas boas roupas. 

Lembro-me que nos tempos de colégio, em São Paulo, para aumentar 
a durabilidade, costumava-se colocar uma chapinha na ponta. Então ficávamos todos parecendo sapateadores da Broadway, tilintando a cada passo. 

Outro costume da época era botar uma meia-sola, para salvar o calçado. Nunca gostei disso. Ficava aquela emenda no meio da sola, e o sapato, reconstituído, nunca mais ficava o mesmo. Mas havia muitos sapateiros naquela época, e com certeza cheios de clientes. Não faziam mais sapatos e botas, como outrora, mas consertos não lhes faltavam.

As coisas mudaram muito. Acho que um dos primeiros sinais foi o Vulcabraz, com sola de borracha indestrutível. O sapato acabava, mas não a sola. As solas de borracha foram virando maioria, mesmo em calçados finos. Depois veio a invasão dos tênis, abandonando as quadras e congestionando as ruas. 

Assim, o trabalho dos bons sapateiros foi ficando mais limitado, e suas oficinas mais raras. Mas ainda subsistem, sempre há um conserto a fazer, um salto ou fivela a substituir. Eles continuam, e creio que até bem.

E a meia-sola? Deverá haver, certamente, ainda quem mande colocar. Lembro-me de meu amigo Sylvio, “A Velha Serpente”, de quem escrevi neste site. Ele, apesar de riquíssimo, em certas coisas era parcimonioso para gastos. Havia comprado na R. Maria Antonia, perto de nossa agência, uns esplêndidos mocassins, fabricados por um espanhol. Anos mais tarde, continuava usando esses mesmos calçados, ou os descendentes deles.
Certa vez em que lhe dei carona para casa, os ditos cujos necessitavam reparos. Ele, morador nos Jardins, tinha ido ao Shopping Iguatemi, providenciar o conserto, mas pediram-lhe uma fortuna para trocar a sola. Indignado, recorreu à sua empregada, moradora de um mal afamado e distante bairro de nossa periferia.
- Quem sabe lá eles dão um jeito, disse. Afinal, são especialistas em buracos, assim que vêem, sabem se foi de 38, 45 ou 9 milímetros! 

É isso, bom e saudoso amigo. Continuaremos colocando meia-sola, senão nos sapatos, com certeza no incerto dia-a-dia de nossas vidas. Caminhemos!

Uma noite de insônia

Fazem uns trinta anos...eu trabalhava numa pitoresca agência de propaganda, numa galeria da Brigadeiro. Era defronte ao hipermercado que ainda ali existe, quando se desce da Paulista.
Eram mesmo outros tempos. Podia-se alcançar o primeiro andar, onde trabalhávamos, por elevador ou uma escada em caracol, sem nenhuma fiscalização. Assim, eram freqüentes os roubos, e devia-se esconder ou levar consigo os objetos pessoais.

No térreo, várias lojas, ótica, papelaria, um restaurante japonês e o Zakuska, bar russo onde o pessoal da agência reunia-se religiosamente todas as noites. Às vezes, já às seis da tarde, podia-se encontrar ali um veterano contato, tomando seu primeiro aperitivo mesmo no balcão.

Serviam ali também refeições, e lembro-me da sopa borsch, de beterraba. Mas o forte mesmo era a bebida, vodka de preferência, numa garrafa com estactites de gêlo. De vez em quando eu comparecia.
O Russo e a Russa, simpático casal de velhinhos, eram os proprietários da casa. Quando não estavam servindo, sentavam-se quietinhos a um canto, e bebiam ainda mais que os fregueses.

Vivi muitas aventuras nesta agência, que tinha um clima familiar, pois o pessoal se manteve praticamente o mesmo, por muitos anos. Havia brigas, mas pode-se até dizer que eram fraternais, e tudo acabava em vodka.

Mas voltando às aventuras, uma delas se apresentou na pessoa de um diretor de arte português. Digamos que se chamasse Manoel.
Ele tinha um amigo, também lusitano, que fazia parte da diretoria de um grande banco. 
E propôs, a mim e meu redator, fazermos uma campanha para tal instituição. A conta era, e ainda é, muito grande, banqueiros ricos e tradicionais. O trabalho extra teria de ser sigiloso.

Fomos ao apartamento de Manoel, na Joaquim Eugênio de Lima. Logo de entrada, ele serviu-nos generosas doses de um saboroso e denso uísque. Uma estranha abertura para os trabalhos, mas pareceu cair bem: logo as idéias começavam a brotar, eu cada vez mais entusiasmado. Elétrico, só faltando subir na mesa, propus uma campanha do princípio ao fim, tema e visual.

O motivo central era o ouro, que tinha uma relação com o nome do banco. Ou, pelo menos, alguém havia me dito isto. Então, ilustrações com esculturas e objetos de ouro, contra um fundo negro. A campanha luzia, e eu também. Cheguei em casa lá pelas duas da manhã, e minha esposa estranhou tanto dinamismo:- ué, você tomou LSD?
Expliquei que a excitação era devida a um bom achado criativo. Mas, seria mesmo?

Não consegui pregar os olhos a noite toda, vendo a manhã aproximar-se. E com trabalhos para o dia seguinte! 
Quando este afinal chegou, contei a meu redator a insônia que me havia atacado, e ele disse que o mesmo lhe havia acontecido - nós fomos é drogados!

O bendito português, de “brincadeirinha”, havia colocado na bebida pó de Pau de Cabinda, casca de uma árvore africana. Trouxera isto de Angola, onde servira nas tropas coloniais. Uma pitada, e um pobre soldado marchava três dias sem parar. Demos-lhe uma bronca, mas o ambiente não dava mesmo para tomar muito a sério. Ainda ameacei-o: 
- vou contra-atacar com outra arma africana, de efeito oposto: você vai ser picado de tsé-tsé, a mosca da Doença do Sono! 

Fomos ao centro da cidade apresentar a campanha na sede do banco. Não foi aprovada.
Talvez o amigo de Manoel não tivesse afinal tanta influência na diretoria. Talvez o brilho do trabalho fosse mais o produto de uma noite de devaneios.
Mas se a campanha do ouro não brilhou tanto assim, nem este tilintou em nossos bolsos, pelo menos rendeu uns cobres, e deu para cobrir as perdas e danos.

Mas com que roupa que eu vou?

Noutro dia, comentei sobre os sapatos da juventude. Pobres sapatos, que se acabavam em dois tempos. Hoje falo sobre algo correlato, as roupas dos tempos difíceis.
Estavam, mesmo, complicados. O salário de meu pai não era lá essas coisas. E embora doutor, era um funcionário público, sem mordomias, nem mensalões. Outros problemas acabavam se refletindo nas necessidades da casa, e particularmente, de um adolescente estudando num colégio de elite em Campinas, e bem na fase de descobrir as garotas.

Mas, com que roupa? Lembro-me de um único paletó, de mescla indefinida, 
e das terríveis calças. Minha mãe, ansiosa para contribuir naqueles tempos duros, fez umas calças brancas, ou quase, de saco de aniagem. Essas eram nossas roupagens para enfrentar o impiedoso mundo dos colegas mais afortunados, e se eu não desenhasse bem, já naquela época, seria um dos bodes expiatórios da turma.

Certa vez, ao tomar o bonde Bosque, que me deixaria a duas quadras de casa, perto do Bosque dos Jequitibás, saltei do bonde andando ao chegar ao local.
Esse costume era ponto de honra, na época. Mas caí de mau jeito, rasgando o joelho da “elegante” calça. Acho que aí meus pais deram um jeito, pois não lembro mais de ter usado semelhante coisa.

Como aconteceu com os calçados, desenvolvi uma fixação por boas roupas, ao chegar a São Paulo, e começar a ganhar meu suado dinheirinho.
Era a época dos grandes magazines. 
-Você precisa de uma roupa nova? Lojas Garbo tem...
-Ducal, o primeiro nome em roupas...
-Basta ser um rapaz direito para ter crédito na A Exposição...
-Casas José Silva...isto para não falar na Liquidação do Mappin:
-Mappin, venha correndo, Mappin, é a liquidação!

Que fim terão levado essas grandes cadeias de lojas? Se não me engano, uma Ducal ainda era encontrada, há algum tempo, na Brigadeiro, quase esquina com Humaitá...
Já no tempo de nosso estúdio no Prédio Martinelli, embora o dinheiro ainda fosse pouco, eu estava a caminho do que Rubem Braga, em “ O Conde e o Passarinho” citou como sendo “Ein Eleganter Mann”...
Meu amigo Shimamoto, numa reunião dos desenhistas da época, em 91 - depois eu conto a pitoresca história -, declarou: - o Saiden não tinha um tostão no bolso, mas combinava um terninho com uma gravata e assim enganava as menininhas!
Era uma época de bem vestir, mesmo que você não tivesse crédito na Exposição. Paletó, gravata, às vezes até abotoaduras. Ainda mais que um de nossos vizinhos era o alfaiate João Dias. Alfaiates, hoje raros, não faltavam na época. Lá pelas bandas da Barão de Itapetininga haviam muitos, inclusive a Sartoria Minelli e a Camisaria William, tudo sob medida.

Depois entrei para a publicidade, e ali, sim, tinha-se de andar como manda o figurino. Isso durante alguns anos. Quando comecei em Criação de Propaganda, esse rigor entrava em desuso, dando lugar às roupas esportivas. Prenunciava-se a era hippie, os criativos eram agora caras descolados, de longos cabelos, calças boca de sino, chinelos e bolsão a tiracolo.

Mas os tempos duros me haviam marcado, então sempre mantive certa compostura. Mesmo hoje, aposentado, tenho um bom guarda roupa, embora tenha doado muita coisa. Mas, nunca se sabe.

Às vezes, uma apresentação mais formal, uma festa, recentemente uma ida a Buenos Aires, onde se pode ainda vestir como se estivéssemos na entrada da antiga Galeria Califórnia, vendo passar as garotas flutuantes de vestido tubinho e cabelos armados com Bom Bril. Provavelmente rumando à idílica Confeitaria Vienense, naqueles idos anos 60.

Uma noite de insônia

Fazem uns trinta anos...eu trabalhava numa pitoresca agência de propaganda, numa galeria da Brigadeiro. Era defronte ao hipermercado que ainda ali existe, quando se desce da Paulista.
Eram mesmo outros tempos. Podia-se alcançar o primeiro andar, onde trabalhávamos, por elevador ou uma escada em caracol, sem nenhuma fiscalização. Assim, eram freqüentes os roubos, e devia-se esconder ou levar consigo os objetos pessoais.

No térreo, várias lojas, ótica, papelaria, um restaurante japonês e o Zakuska, bar russo onde o pessoal da agência reunia-se religiosamente todas as noites. Às vezes, já às seis da tarde, podia-se encontrar ali um veterano contato, tomando seu primeiro aperitivo mesmo no balcão.

Serviam ali também refeições, e lembro-me da sopa borsch, de beterraba. Mas o forte mesmo era a bebida, vodka de preferência, numa garrafa com estactites de gêlo. De vez em quando eu comparecia.
O Russo e a Russa, simpático casal de velhinhos, eram os proprietários da casa. Quando não estavam servindo, sentavam-se quietinhos a um canto, e bebiam ainda mais que os fregueses.

Vivi muitas aventuras nesta agência, que tinha um clima familiar, pois o pessoal se manteve praticamente o mesmo, por muitos anos. Havia brigas, mas pode-se até dizer que eram fraternais, e tudo acabava em vodka.

Mas voltando às aventuras, uma delas se apresentou na pessoa de um diretor de arte português. Digamos que se chamasse Manoel.
Ele tinha um amigo, também lusitano, que fazia parte da diretoria de um grande banco. 
E propôs, a mim e meu redator, fazermos uma campanha para tal instituição. A conta era, e ainda é, muito grande, banqueiros ricos e tradicionais. O trabalho extra teria de ser sigiloso.

Fomos ao apartamento de Manoel, na Joaquim Eugênio de Lima. Logo de entrada, ele serviu-nos generosas doses de um saboroso e denso uísque. Uma estranha abertura para os trabalhos, mas pareceu cair bem: logo as idéias começavam a brotar, eu cada vez mais entusiasmado. Elétrico, só faltando subir na mesa, propus uma campanha do princípio ao fim, tema e visual.

O motivo central era o ouro, que tinha uma relação com o nome do banco. Ou, pelo menos, alguém havia me dito isto. Então, ilustrações com esculturas e objetos de ouro, contra um fundo negro. A campanha luzia, e eu também. Cheguei em casa lá pelas duas da manhã, e minha esposa estranhou tanto dinamismo:- ué, você tomou LSD?
Expliquei que a excitação era devida a um bom achado criativo. Mas, seria mesmo?

Não consegui pregar os olhos a noite toda, vendo a manhã aproximar-se. E com trabalhos para o dia seguinte! 
Quando este afinal chegou, contei a meu redator a insônia que me havia atacado, e ele disse que o mesmo lhe havia acontecido - nós fomos é drogados!

O bendito português, de “brincadeirinha”, havia colocado na bebida pó de Pau de Cabinda, casca de uma árvore africana. Trouxera isto de Angola, onde servira nas tropas coloniais. Uma pitada, e um pobre soldado marchava três dias sem parar. Demos-lhe uma bronca, mas o ambiente não dava mesmo para tomar muito a sério. Ainda ameacei-o: 
- vou contra-atacar com outra arma africana, de efeito oposto: você vai ser picado de tsé-tsé, a mosca da Doença do Sono! 

Fomos ao centro da cidade apresentar a campanha na sede do banco. Não foi aprovada.
Talvez o amigo de Manoel não tivesse afinal tanta influência na diretoria. Talvez o brilho do trabalho fosse mais o produto de uma noite de devaneios.
Mas se a campanha do ouro não brilhou tanto assim, nem este tilintou em nossos bolsos, pelo menos rendeu uns cobres, e deu para cobrir as perdas e danos.

Happy hours no Paribar

Caminhando-se atrás da Praça Dom José Gaspar, topava-se com um meio bloqueio de calçada.
Corpos estranhos: cadeiras, mesas, pilastras de um toldo. E mais, gente sentada ali, batendo papo e bebendo como se não estivessem em praça pública. Muitos pareciam ser velhos conhecidos, quase como uma família, pois iam lá quase todo santo dia.

Quando trabalhei nas imediações, quase não freqüentei o Paribar. Minha turma preferia uma galeria na Sete de Abril, aquela que tem um operário em bronze no portal. Galeria Ipê, provavelmente.
Eu quase não ia lá, também.

Tive maior intimidade com o Paribar quando trabalhei na Vieira de Carvalho.
Lá, um chefe, revoltado com o que supunha ser boicote por parte da firma, passou a freqüentá-lo todas as tardes, e insistia para que o pessoal se juntasse a ele.
Na verdade, a empresa ia mesmo mal, e em grande parte, por culpa dele. Pouco serviço, então às vezes nós o acompanhávamos em seus uísques.

De repente, surgiam figuras conhecidas, em grande euforia: José de Alcântara Machado, o ator Raul Cortez... O Paribar era o refúgio de todos os estressados da época, dos carentes de calor humano, do Centro de todos os Centros da cidade.
Há muitos anos estava ali, plantado no final da praça, e parecia que ficaria até o final dos tempos, imune mesmo aos pedintes, que cada vez apareciam em maior número, espantando para dentro dos abres parte da clientela.

Foi por isso que, quando lá estive com minha esposa, então namorada, escolhemos seu cálido interior, parecido com um bistrô parisiense. Com vinho rosé e as pipocas de oferta da casa. Parecíamos estar flutuando, nossa alegria espoucando como as pipocas, ou bolhas de champanhe, se champanhe estivéssemos tomando. Éramos ainda jovens e inconseqüentes; o mundo, e naquele particular instante, o Paribar, era uma festa.

Depois o trabalho me levou para outras latitudes, com as agências de propaganda fugindo do Centro como o diabo da cruz. Perdi o contato com o Paribar, e com a própria região da Sete de Abril.

Quando lá voltei, tinha fechado. Era um dos símbolos da São Paulo central em grande estilo, sofisticada, mas acessível, agradável e aberta a todas as pessoas de boa vontade.
Não havia mais o que fazer, o Centro havia sido removido para outras regiões, sendo substituído por uma nova e também populosa camada, mas de qualidade muito inferior.

O Paribar não acompanhou a mudança, e preferiu naufragar, provavelmente com seu capitão, em plena praça. Mas em grande estilo.

Com Flash Gordon trancado na mala

Talvez alguns de vocês, na infância amantes de histórias em quadrinhos, tenham conhecido o herói Flash Gordon, que saía no Suplemento Juvenil, no final dos anos 30.
Existiram outras versões mais tarde, e até um filme, super produzido,
há algum tempo, com Ornella Muti e Max Von Sidow. Mas na citada época o herói atingia seu apogeu, uma fase áurea no pincel do americano Alex Raymond.

Eu também não sou desse período. Nasci depois, e conheci os magníficos desenhos de Alex na infância, quando ele desenhava Rip Kirby, um detetive que recebeu aqui o nome de Nick Holmes.
Sempre me impressionaram muito, mas só muitos anos depois, quando desenhava para a Editora Outubro, na Mooca, próxima à Rua Luis Gama, é que tive conhecimento da monumental obra do artista naquela fase barroca de Flash Gordon.

Foi uma revelação, e um choque. O vigor e a elegância dos traços era sem par, ainda mais para aquele tempo. Teve muita influência em meu estilo. O mundo dá muitas voltas, e nalgumas delas ficamos, até hoje, sem saber bem como a coisa aconteceu.

Mas o fato é que, no início de 62, eu embarquei para Porto Alegre, com um original do Flash Gordon desenhado por Alex na minha mala.
E valendo algumas dezenas de milhares de dólares, ainda mais que o autor já era falecido. Esta página, de grosso cartão e grandes dimensões, tinha sido enviada pelo autor para a primeira exposição de quadrinhos feita no Brasil, em 1951. Pela qual foram responsáveis Álvaro de Moya, Jayme Cortez e Miguel Penteado, e aconteceu no Bom Retiro.

Foi talvez por ter participado do movimento pela nacionalização dos quadrinhos, liderado aqui em São Paulo por Maurício de Souza, que eu tenha tido esse privilégio e a nossa sala, a 1922 do prédio Martinelli ter sido a sede, por falta de outro lugar, para o fracassado movimento.
Creio que nossos patrões, Cortez e Penteado, da Outubro, emprestaram-nos o original como estímulo à associação a ser fundada.
Passada esta fase, o polo de nacionalização, e a esperança do desenhista nacional, passou a ser a cooperativa de Porto Alegre, fundada por Brizola, e dirigida por um desenhista carioca - digamos que se chamasse Geraldo.

Então o bravo Flash Gordon partiu comigo, em mais uma heróica missão de boa vontade, para um outro planeta: a para mim desconhecida capital gaúcha.

Era uma página do episódio do Reino das Florestas de 1937. Obviamente, fez muito sucesso entre os admiradores gaúchos, mas não para o presidente da cooperativa. Mau desenhista e complexado, limitou-se a um muxôxo de despeito: Alex Raymond?... Ah, eu o conheci em Nova Iorque. Era um baixinho...

Como se Raymond, um gigante do desenho, pudesse ser mensurado em centímetros.
E seu crítico, o carioca, também não era nada alto, apesar de muito forte. Mas, no desenho, era um nanico.
A cooperativa fracassou, diante de tanta mesquinhez e politicagem. Mas, antes disto, eu já estava a salvo. Tinha conseguido meu primeiro cargo importante na propaganda aqui em São Paulo, então Flash Gordon fez mais um viagem espacial, dentro da mala.

E retornou a seus antigos donos. Hoje faz parte do acervo de Álvaro de Moya, que possui ainda originais do Príncipe Valente, Rip Kirby, Tarzan e outras preciosidades, e escreveu um belo livro: “Anos 50, 50 Anos”, contando como elas vieram parar em São Paulo.

O Pai do Amigo da Onça

Conheci Péricles Maranhão poucos meses antes de sua morte.
Estávamos, então, em 1961. Jovem desenhista, eu fazia parte de uma pretensa e pretensiosa associação, que, sonhávamos, iria promover 
a nacionalização das histórias em quadrinhos no Brasil.
Nosso mercado sempre foi dominado pelos americanos - e agora também pelos japoneses, com seus mangás, verdadeiro tsunami inundando todo país. 
Sempre foi uma concorrência desleal, pois os grandes sindicatos internacionais, distribuindo suas cópias quase de graça, dizimavam - e agora mais que nunca - o trabalho individual dos artistas brasileiros.
Com raras exceções, em que alguns, com grande tino comercial, souberam vender bem seu peixe. Mas voltemos ao nosso estúdio no Martinelli, que tornou-se o centro de resistência nacionalista, contando com 
o discreto apoio de Jânio Quadros. Fizemos chegar nossas reivindicações até ele.
Todo dia recebíamos repórteres, assessores, profissionais, amadores, picaretas, gente de toda espécie. Trabalhar foi se tornando impossível. Entrevistas para jornais e TV, idas para cá e para lá, e tudo isto sem carro, nem dinheiro...
Um desses convites foi para o programa Brasil 61, comandado por Bibi Ferreira, com produção de Manoel Carlos. Isto na TV Excelsior, canal 9, na Nestor Pestana. Encomendaram-nos, como cenário, grandes páginas de quadrinhos em preto e branco.
Nós do Martinelli viramos uma noite inteira para fazer esses painéis, trabalho que jamais foi pago, como fora prometido, pela emissora.
No dia do programa chegou uma comitiva de desenhistas cariocas, que tinham os mesmos objetivos. Entre eles, Péricles Maranhão, o autor do Amigo da Onça.
Péricles, simpático, amável e muito calado, vestia, como um ator da Ópera do Malandro, terno de linho branco e tinha o bigodinho de seu famoso personagem. Tinha um toque de melancolia, que depois iria se explicitar.
Fomos recebidos por Bibi, que fez uma série de recomendações, mas esqueceu de uma: de como deveríamos entrar em cena. Então, foi muito engraçado, pois entramos de lado, mas com os rostos voltados para 
a platéia, com se fôssemos velhas pinturas egípcias, com suas poses características.
E aí, aplausos e gargalhadas do público!
Discursaram Maurício de Souza, pelo nosso lado, e o demagógico carioca José Geraldo, líder da turma de lá. Com toda confusão e falta de objetividade que tínhamos, não é que a lei de nacionalização foi aprovada?
Mas por pouco tempo: dias depois, Jânio renuncia e não se fala mais no assunto.
Quanto ao pobre Péricles, também duraria pouco. Solitário e triste, fechou as janelas, ligou o gás e não viu o ano de 62 despontar no horizonte.

Praça Marechal Deodoro, revisitada

Tenho várias lembranças da Praça Marechal Deodoro, em diversas épocas. Mas nenhuma de períodos mais recentes, quando ela virou um ocasional lugar de passagem.
Nem sempre foi assim. Vejo-a como um ponto central, o coração da difusa região, uma colcha de retalhos de Santa Cecília, Higienópolis, Barra Funda e até Perdizes.
Ali, no seu complexo monumento ao Marechal, morre a Av. São João. Vem-me um conjunto de flashes desconexos, diurnos e noturnos dali. Não saberia encaixá-los todos, como um quebra-cabeças.
Só me resta focalizá-los como numa lanterna mágica: surgem durante um instante, da escuridão e lentamente se apagam.
Pois foi justamente algo assim que vi certa vez num daqueles quarteirões, quase na esquina da Albuquerque Lins, no lado Barra Funda da Praça. Num terreno estreito e escuro, abrigando alguns jogos e diversões. Não lembro dos outros, mas certamente de um aparelho, aparentado com a primitiva lanterna mágica. Um kinescópio, talvez?
Um cilindro vertical, ancorado no chão: punha-se uma moeda e olhando-se pelo visor, uma cena, um pequeno filme em preto e branco, animava-se lá dentro. Coisa que mais parecia ligada não ao século passado, mas ao retrasado, tempo dos irmãos Lumiére.
Na esquina da Albuquerque, a Padaria Palmeiras. Existe até hoje, mas não sei se fazem as maravilhosas empadinhas de palmito com que íamos nos deliciar.
Na esquina oposta, uma pequena drogaria, ou perfumaria, tendo na vitrine uma miniatura da Vênus de Milo, exibia na parede a parábola ilustrada dos dois burrinhos, que puxando em direções opostas, não conseguiam mover a carroça do lugar, até que unem seus esforços...
Passemos á praça. Outra estátua, bem mais simpática, entre as árvores e bancos, depois da Av. Angélica: um índio, numa prova de força com um tamanduá. A praça era muito tranqüila e agradável, mesmo à noite.
Encarando a lateral do tamanduá, o confortável Cine Plaza, a que fui umas poucas vezes.
À noite, entra um cordão de Carnaval: o povo apinhado nas calçadas e lá vem o bloco, com seus truculentos abre alas. Ô abre alas, que eu quero passar!
Junto às paredes, bancas vendiam confete, serpentina e grotescas máscaras de papel machê, com fálicos narigões.
Mais abaixo, todo domingo tinha espetáculo no Circo Piolim.
Lá vinha ele, imenso colarinho branco sobre o fraque, nariz de bola e um bengalão. Estava sempre em conflito com o autoritário Tony, o palhaço branco, símbolo do poder e da disciplina.
Certa vez, numa pantomima, Piolim “morria”, para reaparecer como um fantasma, sob um lençol branco. Confesso que fiquei apavorado!
Numa outra época, o lugar do circo é agora um descampado. Na sua orla, esquina com Lopes de Oliveira, uma grande loja de plantas e vasos.
Na quadra anterior, uma loja expunha suas Mercedes Benz, e eu já as admirava por suas linhas sóbrias e elegantes, ao contrário dos espalhafatosos carros americanos.
Por ali ficava a Pizzaria Solar, em que fizemos nossa modesta despedida do colegial.
E a Casa Whisky? Como pudemos deixá-la de lado? Falha nossa, mas 
não sei porque, jamais provei seus famosos sorvetes.
A praça se afunila, está chegando a seu final. Logo à esquerda, quase no final da Gabriel dos Santos, ficava o Colégio de Aplicação, onde estudei. Hoje é outro estabelecimento de ensino, mas a estrutura é idêntica.
Pegado a ele, ficava o magnífico Cine Santa Cecília, que resistiu 
até o início dos anos sessenta. A Av. Olímpio da Silveira segue, em largas passadas, direção à Àgua Branca. Um Minhocão passou por cima de todas essas lembranças, e a praça nunca mais seria a mesma. E nem a cidade.