sexta-feira, 12 de março de 2010

Natal de 52

Como diziam nas escolas de antigamente, descrição á vista da gravura.














E exibiam grandes e coloridas gravuras- onde terão ido?- com cenas campestres, paisagens cheias de animais e flores. Neste caso, não é gravura. Uma velha foto, enviada por um tio, já falecido. Ficou inesquecível, um marco numa época de poucas câmeras e raras fotos.

Também muitas das pessoas retratadas já se foram, e só faltaria a copia estar amarelecida, para dar o devido toque nostálgico. Seria muito justo.

Mas não está. Todas figuras bem nítidas, bem como a memória daquele momento mágico, perdido no passado. Local: casa de minha Tia Zilda, na R. Albuquerque Lins, defronte ao Cine São Pedro. Era Natal, a grande data do encontro da família Simões.

Muitos dos parentes vinham de outras cidades, como no nosso caso. Na época, Tietê, onde meu pai administrava uma fazenda experimental. Era uma quase obrigação, data oficial no calendário da vasta família. Uma emoção entrar na velha casa, sentindo o agudo cheiro do pinheiro, de bom tamanho, já montado e enfeitado na sala da frente.

A casa não era grande, como continha tanta gente ? O que se comia na festa? Não lembro bem, mas talvez leitão assado, farofa, saladas, panetone, as inevitáveis frutas secas.

Abria-se cerveja, refrigerantes e enfim o espoucar da champanhe. Peru, hoje encontrado em qualquer padaria, era coisa para milionário naqueles tempos.

A grande mesa era montada na sala de jantar, que durante os dias normais era usada para as aulas extras de minha tia, professora da Caetano de Campos. E os presentes? Existiam? Eram distribuídos ali, para tanta gente ? Parece complicado.

-Mas você falou e falou. Cadê a descrição? Bem ,vamos lá.

O grande grupo ocupa toda a sala, vê-se ainda ao fundo uma chapeleira e um quadro metálico da Santa Ceia. Ao fundo, a partir da esquerda estão meus pais e os tios mais altos.

Nas fileiras mais à frente minhas tias, os tios mais baixos. Ao centro, minha avó com seu sembrante severo, perfil de uma Sioux, a grande dama da festa tradicional. Teria mais de setenta anos, e viveria até os noventa e quatro

Na linha de frente, sentados, os baixinhos do pedaço; meu Tio Amador, do Rio de Janeiro; meus primos pequenos, meu irmão, e bem ao centro estou eu, vestindo absurdo paletó, apesar da pouca idade. Todos olham para a câmera, operada pelo meu tio Rafael, o único ausente do instantâneo.

Mas fazem mais que isto: olham para o futuro. Para os Natais que ainda viriam, para o mistério insondável do não acontecido...

Vejo, como num espelho distorcido, a imagem do jovem Luiz, que olha diretamente para mim e pergunta o que fiz da minha vida, se consegui conduzir-me bem, através de tantos descaminhos.

Bem ou mal, meu caro rapaz, não sei definir precisamente. Sou um sobrevivente, atravessei muitos outros Natais, e espero resistir a mais alguns. Mas alguns nos marcam para toda vida, e este foi o caso daquele Natal de 52, eternizado em preto e branco.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Milagres do dia a dia

Existem milagres? Se sim, como e quando eles funcionam? No meio de tantas tragédias do mundo, de repente parece que fomos sorteados pelos céus...

Minha vida estava um bocado complicada. Estava saindo de uma péssima experiência conjugal. Foi quando conheci Márcia, em 74, por um acaso extraordinário,e dois anos depois nos casaríamos. Mas isto é apenas o começo desta história.

Eu trabalhava com criação de publicidade numa agência da R.Veiga Filho,em Higienópolis. Estávamos agora em 75, eu tinha muito trabalho, ganhava pouco e os bons serviços não tinham nenhum reconhecimento pelos sócios da firma.

Chegou a um ponto que não suportava a mesquinharia do lugar, e decidi que teria de sair. Ou isto ou ficaria muito doente. Mas, como? Era uma época de crise, de desemprego brabo - isto já naquele tempo. Profissionais mais experientes e afamados que eu estavam sem trabalho. E eu, na minha obssessão: iria arranjar outro emprego, custasse o que custasse.

Estava numa lanchonete chilena, ali perto, e deu-me um estalo: recentemente uma grande agência gaúcha, em expansão, fundira-se com uma paulista, que tinha como donos grandes talentos, mas com pouco tino comercial.E que estavam à beira da falência.

Então na verdade fôra uma compra; os gaúchos assumiram as dívidas e os talentos da agência paulista. Se há alguma chance, é aí, pensei. Um dos sócios paulistas - vamos chamá-lo de Armando - gostava muito de meu trabalho. Havíamos trabalhado juntos tempos atrás, mas há vários anos eu não o via, nem lhe falava.

Nem sabia onde ficava a nova firma; um estagiário procurou na lista e achou um endereço nos Jardins. Vou lá, eu disse. Mas entra trabalho e mais trabalho, e não fui.

No dia seguinte, passa uma contata de uma produtora. Ia à nova agência, que, afinal, ficava perto da minha,ali mesmo no bairro!
Que coincidencia! -Ah, agora,sim, eu vou lá! Mas, entra mais trabalho ainda, e embora eu não esquecesse a nova agência, acabei não indo.

Terceiro dia: estava perdido em meio aos pedidos de trabalho (jobs), quando toca o telefone,e eu até pressenti o que era: o Armando, me chamando para a nova firma! E ainda teve de pesquisar, pois nem sabia onde me encontrar!

É claro que fui para lá. Foram, profissionalmente, os mais felizes, os dois anos que trabalhei ali. Fiz grandes amigos, tive muitas campanhas premiadas,nacional e internacionalmente. Fazia terapia, e o analista declarou: você mudou de mulher, de emprêgo, de casa, de carro! Você não precisa mais de mim!

Se a vida fosse sempre assim, hem? Mas só ter participado desses fatos - para mim, miraculosos - já foi uma experiência que enriqueceria todo o meu caminho pela frente.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O que fazer quando se foge da escola de datilografia?

Estive lendo no site o dedicado trabalho do uma pessoa, na formação de seus alunos de datilografia.
E pensei, com certa tristeza, que jamais seria um de seus formandos.
Simplesmente, eu não levava jeito com o teclado. E precisava decidir-me por uma profissão, pois o dinheiro que meu pai deixara ao falecer não era muito e estava sendo consumido rapidamente

E sem datilografia, nada feito! Onde iria trabalhar? Alguém equiparou o problema ao da computação, hoje em dia. Disse um parente - pára, rapaz, com essa história de desenho, isto não dá nada, o negócio mesmo é o comércio!

Rendi-me às circunstâncias, e eis-me na Escola Underwood, dedilhando aquelas pesadas máquinas enferrujadas, bem ao sopé da colina encimada pela Igreja de S.Geraldo, no Lgo.Padre Péricles, Perdizes. Mas preferiria estar no Cine Sta.Cecília, ali perto.

Bem que eu tentei. Não era só minha canhestrice ao teclado; outras forças se rebelavam, queriam um trabalho mais livre e individual, bem fora do horizonte exíguo de uma repartição.
A S D F G H J K L Ç...as letras ainda continuam as mesmas, porquê eu me rebelava contra as duras teclas? Fiquei ali uma semana, então saí para não mais voltar.

A primeira indicação de trabalho em publicidade partiu de um tio, que conhecia alguém no depto. comercial da Três Leões. Cruzei a Pça .Julio de Mesquita, aboletei-me numa cadeira...e eis listas e listas de peças para datilografar! Não era bem aquilo que esperava como publicidade. Então agradeci a boa vontade do chefe e saí, jurando nunca mais trabalhar, se possível, nesse tipo de ofício, enquanto cruzava as figueiras e chichás do Lgo. do Arouche.

Minha teimosia renderia frutos, como quando comecei minha Via Crucis numa agência de verdade. Relatei isto em "Emprêgo Al Primo Canto", neste site. Não foi fácil, mas aos poucos as coisas foram se encaixando, e ao contrário do que diziam os sábios tios, arte podia render dinheiro, e ainda abrir novas portas.

Comecei com desenho, parti para a ilustração, e enfim para a direção de arte, em criação de propaganda. Tive vários trabalhos premiados, em vários setores. Passados tantos anos, eis que vejo-me finalmente encarando as temidas teclas, embora mais suaves, de um computador.
Não sou bom ainda. Escrevo catando milho; a fuga da Escola Underwood deixou seqüelas, até hoje. Mas gosto de escrever, então isso facilita o trabalho.

Mas ainda gosto, muito mais, de um bom desenho ou pintura, e afinal não fiz muitas na vida, sempre sobrecarregada com prazos a cumprir e responsabilidades para com os patrões.
Mas, quem sabe, ainda dá tempo!Mãos à obra!

Mais amici miei

Entrei na publicidade como ilustrador. Aos poucos, foram notando que além do desenho, eu tinha facilidade para criar anúncios e filmes. Numa convenção latino-americana da minha agência internacional, os chefões foram para as solenidades e festas, deixando o trabalho de criar as campanhas para a convenção nas mãos de nós, o povo.

Quando retornaram para fazer os serviços, nada mais lhes restava: eu e um redator havíamos feito tudo, e apesar de tentarem, não conseguiram fazer melhor. Nosso trabalho foi apresentado, com muito sucesso.

Assim passei a ser um criador de meio período, pois a agência, antes pequena, agora expandia-se e precisava novos valores. Mas ainda havia o que ilustrar, então eu ficava no fio da navalha.

Sem saber que fazer comigo, colocaram-me como parte de um trio de criação. Os outros dois, famosos e consagrados no meio, não poderiam ser mais díspares. Joca, o redator, era bem mais velho que eu, gordo, baixinho, careca e dotado de um amplo nariz. Sempre brincando e contando piadas. A diretora de arte, uma alemã, alta, cabelos loiros lisos como uma taboa. Era tão refinada quanto prepotente, taciturna e posuda.

Faziam dupla há um bom tempo, tendo passado juntos por várias agências. Era a dupla Mutt e Jeffa, em alusão a dois antigos personagens de quadrinhos, um alto e magrelo e o outro baixote.

Trabalhavam juntos há tantos anos, que haviam alusões a um romance entre eles. Mais tarde, Joca me confessou que detestava a alemã, e duplava com ela mais por medo que por amizade:

- Aquela nazista! - disse uma vez.

Pois bem, cá vim eu cair nessa estranha dupla, e dava-me bem com os dois.

Certo dia, ela recebe uma bela proposta e pede demissão. Sem que o tivesse pedido, eis-me, principiante e inexperiente, fazendo dupla com o famoso Joca! Apesar de gozador nato, ele foi paciente e solidário comigo. Quando o maquiavélico diretor de criação quis trocar-me de dupla, para colocar uma estrela em meu cobiçado lugar, Joca opôs-se:

- Pra quê? Nós estamos nos dando bem!

Isto não impedia suas brincadeiras, que eram a face defensiva que apresentava para o mundo. Quando, ao fim do expediente, caminhávamos pela Casper Libero, rumo à Garagem São Paulo, onde deixávamos os carros, Joca simulava um acidente, como se alguém o houvesse pisado, e fazia o maior escândalo, em altos brados.

- Meu pé! Senhor, o meu pé! - Isto chamava a atenção da rua inteira, e eu, que ainda era muito tímido, não sabia onde enfiar a cara.

D’outra feita, fomos fazer uma campanha em seu apartamento na Av. Paulista, e ele e a esposa, também madurona, brincando, rolavam pelo chão, como duas crianças em luta.

Joca era um perdulário. Recebendo há muito, altos salários, desperdiçava-os em bobagens. Se fosse nos dias de hoje, seria a festa dos camelôs da Vinte Cinco de Março. Não podia ver uma banca, e lá vinha ele com óculos, radinho, reloginho de Mickey, enfim, era o rei do gadget, da bugiganga.

Confidenciou-me que o dinheiro lhe queimava as mãos. Seu pai fora artista de circo, trabalhara no rádio e no cinema e nunca juntara um centavo. Assim, ele sentia-se culpado, pelo dinheiro que lhe afluía, sem grandes dificuldades. Era inimigo das convenções. Á vezes, no meio dum bate papo com outros colegas na sala, deixava as calças caírem, expondo os generosos glúteos.

Depois nos separamos, seguindo os caminhos de outras agências. Uma história dele, que não testemunhei, virou lenda urbana. De acordo com o narrador, variava o local, ou as pessoas, mas basicamente, era assim: O dono de uma agência estava-a mostrando a um cliente, na hora do almoço. No segundo andar havia uma série de janelas próximas, dando uma para cada sala. Entram na primeira, e lá está, sozinho, o Joca. Saem pelo corredor, e quando entram na segunda, lá está o Joca também! Havia entrado pela janela, caminhando pela balustrada. Repetiu o truque várias vezes, para vexame do dono e diversão do visitante, que elogiou a "unidade da equipe".

Voltamos a trabalhar juntos em 85, quinze anos depois da minha estréia na Criação. Ele continuava o mesmo, brincando com tudo, atrapalhado e sem dinheiro. Tínhamos então uma casa no Litoral Norte, e ele pediu certa vez que lhe déssemos uma carona na rodoviária do Guarujá, onde tinha apartamento.

Como esperado, chegou ao encontro atrasadíssimo. Na volta, rolava no chão do carro, brincando com meu filho de sete anos. Ele e esposa adoravam crianças, e adotaram dois bebês, apesar de ambos cinquentões e com problemas cardíacos.

Novamente nos separamos e ele foi trabalhar em Belo Horizonte. A idade já lhe pesava, e os empregos decentes escasseavam por aqui. Ainda o vi uma vez, na grande agência em que trabalhei, na R. Gomes de Carvalho. Tinha vindo a São Paulo tentar um retorno, mas nada conseguiu. As coisas estavam, mesmo, difíceis.

Numa das feijoadas amigas que eram realizadas ás quarta feiras, um dia, veio a notícia: O bom Joca havia falecido, lá nas Gerais. Deixaram-no uma manhã lendo o jornal na sala, e o encontraram do mesmo modo, como se tivesse adormecido. Era o fim de uma lenda da propaganda, já legendário também na nova terra onde se havia estabelecido. Morrera como um anjo, da mesma forma que levara a vida.

Retorno à sala 1922 do Martinelli

Em 1960, montamos um estúdio de desenho no Prédio Martinelli. Já escrevi algumas vezes sobre o tema, mas, como tudo na vida, ele é infindável. Dissecamos as moléculas e encontramos o átomo. Depois, as partículas sub-atômicas, e por aí vai. Nada, na natureza tem fim. E nem começo.

É tudo assim. Então, num dia nostálgico e cinza como hoje, retornemos a 1960.

Quatro amigos, nos havíamos conhecido na Editora Outubro, na R.da Mooca. No início, não era ainda amizade, mas simpatia, ou afinidade de interesses e aspirações artísticas. Estivemos no Martinelli por dois pitorescos anos, convivendo com a exótica fauna que o freqüentava.

Era uma coexistência pacífica, na qual formávamos um grupo estranho, e que talvez por isso, destoasse e chamasse a atenção dos decadentes e fadados à extinção habitantes do prédio e sua vasta população flutuante. Que incluía malandros, prostitutas, jogadores, gigolôs, alfaiates, dentistas, bancários e outros representantes de classe, lutadores de judô da Academia Ono... enfim, quase tudo que se possa imaginar. Assim, sentíamos-nos um pouco boêmios, também, participando deste bas fond.

Todos os quatro brilhantes desenhistas, éramos personalidades bem diversas. Dois deles eram investigadores de polícia bissextos que davam, algumas vezes, plantões no DEIC, mas tinham bastante folga para dedicar-se ao que realmente gostavam, o desenho. Um deles, pouco freqüentador do estúdio, tornou-se mais tarde diretor de um importante departamento da Editora Abril.

O outro, bem mais incomum, era um temperamental. De sangue espanhol, às vezes interrompia o trabalho para sapatear um passo doble, exclamando: 

- yo soy gitano! Olé!

Ou invadia a sala e disparava, inesperadamente, seu 38 contra o céu do Anhangabaú! Era muito divertido e grande contador de piadas, embora mergulhasse, às vezes, em profunda melancolia.

Restávamos eu e o Julio, talentoso nissei que era o xodó da Editora, pelo esmero com que realizava um pequeno número de páginas, embora isto lhe rendesse ainda menos dinheiro do que o pouco que era habitualmente pago. Éramos os mais jovens e inexperientes, e contemplávamos com espanto aquele admirável mundo novo que tínhamos, diariamente, pela frente.

Chamemos nosso amigo andaluz de Arellano, pseudônimo que usava às vezes em suas histórias.

Embora fosse casado e pai de três filhos pequenos, era um boêmio nato, sendo assim nosso guia e mestre pelas ruas tortuosas do velho Centro. Graças a ele conhecemos recantos da São Paulo dos anos 60, que já não mais existem. 

A Caverna Santo Antonio, o Franciscano, a Adega Lisboa Antiga, onde confessou, depois de umas que outras, que seu pai, velho anarquista, havia se enforcado em sua aldeia natal. 
E a ele coubera retirá-lo da forca e dar-lhe sepultura. 
Talvez fosse esta a maior razão de sua ocasional depressão.

Estivemos umas vezes num bar, no Lgo. São Francisco, que só servia sardinhas na brasa, acompanhadas de cerveja. E num bilhar da Pça. da Sé, onde o chopp corria solto. Ele tudo sabia e tudo provara, ali no Centro.

Ou caminhávamos, sem nenhum medo, pelas vielas e botecos da Boca do Lixo, encontrando, às vezes, algum habitante do Martinelli, como o alfaiate João Dias, jogando bilhar.

Mais tarde, os caminhos dos quatro divergiram e nossa sala, a 1922, esquina da S.João com Libero Badaró, foi fechada.

Julio e eu fomos para uma cooperativa de Porto Alegre, fundada pelo governo Brizola, que parecia a salvação da lavoura para o desenhista nacional. Mas, rapidamente, revelou-se só demagogia e corrupção. 

Fiquei um ano por lá, e quando as coisas já estavam ficando desesperadoras, surgiu-me a oferta de um bom emprego numa multinacional, uma grande agência de propaganda paulista. Lá estava trabalhando o bom Arellano, que foi quem me recomendara.

Fiquei ali quatro anos, depois surgiram propostas melhores, e em outro emprego, tive a alegria de retribuir o favor a Arellano, levando-o para trabalhar no meu setor. Mas notei que ele já não tinha mais o brilho e a irreverência de outros tempos, era mais calado e submisso. Fora-se a verve e o fogo dos olhos.

Mudei novamente de firma, e ele continuou por lá e não mais nos vimos, embora ainda desse seus plantões no DEIC, pegado a minha nova agência.

Numa tarde, era véspera de Ano Novo, eu estava só em minha sala. Quase todo pessoal já saíra para festejar, e eis que toca o telefone.

Era Arellano, para desejar um Feliz Ano. Fiquei comovido, mas achei estranho, pois há muito não nos falávamos. Batemos um bom papo, e como o ano que se iniciava era 69, ele ainda foi irônico, na despedida. Como nos bons tempos. 

Fui para casa e a sensação de estranheza me acompanhava. Passou o feriado. Estou novamente só em minha sala, e o telefone soa. Era sua esposa, convidando-me para a Missa de Sétimo Dia.

Meu amigo não conseguira encarar o ano que se avizinhava, e suicidara- se, naquela mesma tarde de nossa conversa. Tinha 35 anos, e uma vida de promessas pela frente. Senti-me, novamente, como nos tempos do Martinelli, adolescente e perplexo ante nosso absurdo mundo.

Pelos corredores do Martinelli

O Martinelli, em 1960, era um burburinho, um entra-e-sai de pessoas, sem o menor controle. Podia-se entrar pela São Bento, pela Líbero Badaró ou São João, pela porta giratória do Hotel São Bento. Numa das vezes que entrei pela R.São Bento, o ascensorista, desconhecido e sem uniforme (poderia ser um dos inquilinos), cantava a plenos pulmões "Rosa", de Pixinguinha. E como cantava, lembrando Orlando Silva!

Nossa sala, a 1922, ficava num canto do 19º andar, na face que dava para o Anhangabaú. Saindo do elevador e dobrando à direita, cruzava-se um portal escuro, e ali ficava um conjunto de salas, servidas por um banheiro em comum. Éramos quatro desenhistas, e nosso trabalho principal eram histórias em quadrinhos de terror para a editora Outubro. Nada mais apropriado então que aquele soturno ambiente.

Fizemos amizade com alguns dos vizinhos. O Dr.Moura, veterano dentista, ótima pessoa, mas com a visão de uma toupeira. Olhava uma boca toda cariada e achava perfeita. O alfaiate João Dias e o cego, mas espertíssimo Ito, comerciante de materiais de limpeza.

Ito tinha sob sua custódia trabalhos paralelos, agregados que distribuíam seus produtos, e dois irmãos encanadores, que não sei porque se relatavam a ele. Eram baixinhos, mas de braços colossais, moradores de Ferraz de Vasconcelos. Um deles agenciava sua própria mulher, que era prostituta. Não a conheci, mas ele orgulhava-se da beleza e competência da "patroa", na mais velha das profissões!

Eu era muito jovem e inexperiente e o Martinelli parecia-me a Babilônia. Gays engravatados batiam à porta e tínhamos de ter muito tato para dispensá-los numa boa. Vendedoras de cafezinho vinham oferecer seu produto, e também serviços extra, também quentes.

Romances baratos inevitavelmente surgiam, pois éramos jovens e talentosos, e algumas garotas posavam como modelos para nossos desenhos. Apesar do clima de bas-fond, nunca tive medo dali. Algumas vezes trabalhava até altas horas. Ia pegar uma condução para a Barra Funda, onde morava, sem nenhuma preocupação. Ao sair pela Líbero Badaró, sempre me deparava com o luminoso em neon da "Salsicharia Especial", onde dois porquinhos disputavam, para sempre, uma fileira de salsichas.

Ganhava-se pouco, mas era muito pitoresco e divertido. Um de meus colegas, investigador bissexto da polícia, às vezes sacava seu 38 e disparava para o espaço, através das largas janelas. Outro deles, que morava na periferia de Santo André, sem dinheiro porque a editora atrasava o pagamento, dormiu ali algumas frias noites. Dobrava as roupas, para não se amassarem, embrulhava-se em jornais e recolhia-se embaixo da prancheta, tentando evitar o vento gelado que subia pela São João. Prenunciava assim os sem-teto que viriam, nas décadas seguintes. Felizmente seu trabalho e esforço tiveram sucesso, mais tarde.

Embora muitas vezes almoçássemos fora, como no Restaurante Dom, bom e barato, na R.Aurora, atrás da Pça. da República, podia-se comer no Prédio mesmo. Haviam bares e lanchonetes, e não me lembro de ter passado mal com a comida.

Com tanta gente de dentro e de fora, ainda assim sentia-se no prédio um clima de comunidade. Parecia haver uma estranha ligação entre pessoas tão diversas, um ar de compreensão e tolerância. O denominador comum era o Martinelli, naquele tempo ainda imponente e venerável. Sua presença majestosa e severa era o que dava a todos, abrigados à sua sombra, esse sentido de identidade.